IN MEMORIAM do FUNDADOR do

CINECLUBE DO PORTO

HIPÓLITO DUARTE CARDOSO DE CARVALHO
1927-2002

COMO NASCEU O CINE-CLUBE DO PORTO

Adaptado de artigo de Jorge Campos Tavares *

Tudo começou há cerca de sessenta anos num liceu do Porto - o Liceu Alexandre Herculano - estava ainda em curso a Segunda Guerra Mundial.

O cinema fervilhava na cabeça de muitos e ir ao cinema era o rito semanal das tardes de sábado. Nesse dia lá estávamos todos a ver a fita que melhor nos parecera essa semana - avaliada pelos quadros expostos no átrio ou pelo "trailer" visto na semana anterior. Como nessa época não havia restrições no que respeita à entrada de menores, nós víamos tudo - bom e mau, aconselhável ou desaconselhável - mas, de uma maneira geral, escolhíamos bem.

Já então havia um numeroso grupo de "doentes" que discutia cinema, uns com veleidades de estetas, outros pretendendo ser entendidos em "como aquilo se fazia", outros ainda romanticamente apaixonados pelas "vedetas", coleccionando-lhes fotos, outros ainda planeando lançar-se na Produção quando fossem "grandes"...

Apesar das nossas discrepâncias em matéria de ideais, encontrávamo-nos sempre nas "matinées" a ver as mesmas fitas de pancadaria, de série, (com dúzias de episódios inverosímeis), comédias, "westerns", e a apreciar os duelos entre o Errol Flynn e o Basil Rathbone naquelas películas em que a História era a maior vítima assassinada do princípio ao fim da película.

Ora, entre nós, havia um que já nesse tempo mostrava uma ponderação e uma iniciativa aliadas a um bom-senso verdadeiramente precoce - o Hipólito; activo, com modos suaves, uma grande capacidade de organização, sabia orientar os ímpetos juvenis dos colegas, impondo-se como líder, sem todavia magoar as susceptibilidades dos menos maleáveis.

Creio que no seu quinto ano, encabeçou um movimento para dar sessões cinematográficas no Liceu (aproveitando a existência de uma sala própria, com projector e projeccionista) exibindo assim, para alunos e professores alguns bons filmes em "reprise" pelo preço das custas.

Depois com um pequeno núcleo de colegas fez uma espécie de clube de cinéfilos - "A República dos Pardais" - em que os sócios se quotizavam para irem em grupo ver filmes de agrado colectivo. A "República dos Pardais" não excederia três dezenas de jovens.

Numa viagem de férias que fez a Barcelona entrou em contacto directo com o Cine-Clubismo autêntico e veio-nos de já com a ideia de formar um Cine-Clube legal e real, em vez de brincadeira de estudantes - que englobasse não só os cinéfilos, como os que pretendiam fazer filmes e os que se interessavam esteticamente pelo cinema.

E isto também porque era uma época muito feliz para o cinema português e em que os filmes portugueses faziam um grande sucesso no público, como nessa altura, em 1944, a Menina da Rádio.

Assim, a 13 de Abril de 1945 [a poucos dias do final da 2ª Grande Guerra], uma data que nós logo consideramos solene, fez-se uma reunião em casa do nosso líder [R. de Santa Catarina, 1252] e enxertada na "República dos Pardais", que se desvanecia, nasceu o Clube Português de Cinematografia (CPC).

As finalidades do clube foram ali logo estabelecidas. Defender o cinema em geral e o cinema português em particular, publicar um boletim, realizar sessões exibindo filmes de interesse cine-clubista tendentes a dar uma boa formação cinematográfica aos associados. Formar ainda uma escola de cinema. O clube não tinha fins religiosos ou políticos.  Tinha então a quota mensal de 2$50 [considerando o efeito da inflação, equivaleria em 2006 a 0,91 € ou a 182$].

No dia 5 de Maio desse ano de 1945 saía a primeira notícia nos jornais. Seria em A TARDE (Porto) onde se lê: "Fundou-se no Porto, O Clube Português de Cinematografia, que tem delegações em Lisboa e Coimbra, e se destina a desenvolver o gosto pelos mais sérios problemas da cinematografia. É seu director, Hipólito Duarte".

Inscrito na Federação das Colectividades, "em organização", prepararam-se os estatutos e começou a campanha para angariar mais sócios.

Novos sócios - todos jovens - foram aderindo, alguns amadores experientes como A. Lopes Fernandes, e um profissional, o operador Fernando Neves.

Uma firma de artigos fotográficos [Pathé-Baby na Rua de Santa Catarina, 315] deu também o seu apoio e finalmente, a 23 de Março de 1946 o CPC dá a sua primeira sessão de acordo com o que se propôs fazer inicialmente.

1ª Sessão do cineclube (Hipólito é o 1º com garbadine branca)Decorreu no salão do "Grupo dos Modestos" [R. Gonçalo Cristóvão], em sessão privada para os sócios de ambas as colectividades. O programa composto por filmes de formato reduzido, consistia no desenho "Automania" de Servais Tiago, "Pesca do Sável" e "Marrocos" de Mateus Júnior (filmes amadores premiados), tendo como filme de fundo uma cópia em 9,5 mm do "Fausto", de Murnau - um filme clássico, mudo, com Emil Jannings no Mephisto.
 
 

Os filmes exibidos nessas primeiras sessões eram em grande parte de formato reduzido, disponíveis para alugar na Casa Pathé Baby. Estavam lá há anos, desde tempos anteriores à guerra que então acabara: cópias coçadas, denteado esfrangalhado, fotogramas queimados pelo calor da lâmpada de projecção, cortes acidentais - muitas vezes mal colados - enfim, era o que se podia arranjar dentro do possível (na época conturbada de fim de uma grande guerra). Consistiam basicamente em comédias do cinema mudo de curta duração - principalmente do Charlot - e alguns clássicos do cinema mudo. Apesar destas deficiências aprendemos nessas sessões muito do que é o Cinema e das suas origens.

Depois dessas primeiras sessões, o Clube já existia de facto e a sua acção já se começava a fazer sentir. Entretanto, abriram-se concursos de planificações para a primeira produção do clube.

Todas estas actividades culminaram em Outubro de 1946 quando o Cine-Clube arca a responsabilidade de trazer ao Porto um filme profissional, não-comercial, garantindo a passagem total da casa (Cinema Júlio Dinis) na noite da estreia - o que consegue.

Foi assim que o Porto teve o ensejo de ver em exibição, durante uma semana, esse notável filme sueco de Alf Sjoberg "A Estrada que Conduz ao Céu".

filmagens do Cineclube Em finais de 1946 as primeiras produções do CPC começam as filmagens (em 9,5 mm: O PORTO TRABALHA e em 35 mm: ALFA).  Na foto da esquerda para a direita: Mário Proença, João David, A. Lopes Fernandes, Guilherme Fernandes, Manuel Ferraz e Augusto Romariz.

Dá-se também início ao Programa de Rádio Vamos falar de Cinema.

No campo profissional, os filmes portugueses continuam a surgir e a encantar as audiências como A Vizinha do Lado (1945) ou Camões (1946).

Em fins de 1946, já não era o caso de se terem lançado as fundações de uma obra - a obra estava feita: havia uma situação legal (embora os estatutos não estivessem ainda aprovados), princípios estabelecidos e, de certo modo, cumpridos, associados numerosos, uma posição financeira equilibrada, prestígio, e uma obra realizada - sessões com filmes clássicos, e digamos, uma ante-estreia de um filme importante. E tudo realizado por jovens cheios de entusiasmo e boa vontade. O Clube realizara-se!

Em 1947 é o ano da afirmação com o reconhecimento nacional e os primeiros contactos internacionais formais com a participação, em Setembro de 1947, no I Congresso Internacional dos Cineclubes em Cannes, através da presença de Manuel Azevedo.  O Cine-clube custeou a maior parte da sua ida: 3000$ (atendendo à inflação seriam no ano de 2006 cerca de 1082 € ou 218 contos), que eram todos os fundos disponíveis na tesouraria do clube, o que foi feito contra a vontade da alguns sócios, que queriam que essa verba fosse gasta no que originalmente estava destinado fazer-se: financiar produção de filmes experimentais. Não concordávamos que um sócio fosse "arejar" até França uns dias a fim de que na Europa se soubesse que existia no Porto um Cine-clube, sem outras vantagens aparentes para nós. A reunião terá sido bem orquestrada, a vaidade de se saber "lá fora" que nós existíamos encantou alguns, outros acharam bem, outros terão concordado por que a ideia tinha vindo de pessoas mais velhas, enfim, foi assim que o Clube entrou na Europa. O regresso até foi atribulado pois, à entrada em Portugal, parece que houve alguns "problemas" na fronteira, por questões do foro político (ele teria sido apanhado a trazer "material subversivo" o que teve reflexos muito desfavoráveis na vida do cine-clube).

O tempo passou e muito aconteceu. O clube evoluiu muito, em 1948 acrescentou ao nome de CPC o de Cine-Clube do Porto e chegou a ser - dizem - um dos maiores da Europa.

Mas tudo isso é outra história. Contamos aqui apenas como se fundou esse clube, nascido pela mão de Hipólito Duarte da "República dos Pardais" do Liceu Alexandre Herculano, génese de que já poucos se lembram e de que não existem sequer arquivos...

* (Plateia, nº 694 de 18/5/1974, pág. 60 e carta pessoal de 02/01/2003)



 

ARTIGO no jornal PÚBLICO de 11.05.2003 (pág. 54) por José Manuel Lopes Cordeiro
 
 



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Última actualização: 05.01.2006