Entrevistas com os
Professores Doutor Rui Paixão Doutor Manuel João Carrilho

 

“Todo e qualquer estímulo, incluindo psicossocial que perturba o funcionamento do organismo, o perturba como um todo.”

                                                           

                        Cannon

 

Introdução

Definicão

Resenha Histórica

Frederic Chopin, um caso Psicossomático?

Conclusão

Anexos

Opinião

Créditos e Bibliografia

 

 

 

Professor Doutor Manuel João Quartilho

 

 

Manuel João Rodrigues Quartilho é psiquiatra no Hospital da Universidade de Coimbra e Professor Auxiliar da Faculdade de Medicina. No âmbito das suas actividades clínicas e pedagógicas, tem manifestado um interesse particular pelos fenómenos de somatização, no contexto clínico, bem como pelos aspectos sociais e culturais da teoria e prática médicas. Fez dois estágios académicos, nos Departamentos de Medicina Social e Antropologia da Universidade de Harvard, e no Departamento de Psiquiatria Social e Transcultural da Universidade McGill. Obteve uma Menção Honrosa do Prémio Bial, em 1998, com o trabalho “ Somatização: conceitos, avaliação e tratamento.”

 

Questão (Q): Como conceptualiza actualmente a Psicossomática?

 

A Psicossomática é um termo com uma longa história na Medicina. Talvez seja bom situar o início do termo nos anos 60, já que foi mais ou menos nesta altura que se começou a falar das chamadas doenças psicossomáticas. O que se pensava na altura era que essas doenças resultavam de um conflito psicológico mal resolvido. A expressão doença psicossomática tinha uma conotação psicodinâmica, psicanalítica, pensando-se, portanto, que havia um conflito inconsciente. Hoje em dia, não se pensa que haja propriamente doenças psicossomáticas. O que se considera actualmente é que todas as doenças, de uma maneira geral, estão sujeitas à influência positiva ou negativa de factores psicológicos e, portanto, em vez de falarmos de doenças psicossomáticas, falamos de processos psicossomáticos.

 

Q: Qual considera ser a importância da Psicossomática nos dias de hoje?

           

A Psicossomática é uma das minhas áreas de interesse. Acho que esta área é muito importante, na medida em que faço parte da consulta de Medicina Psicossomática dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Esta consulta começou em Janeiro de 2001 e recebemos sobretudo pessoas que se apresentam com queixas físicas funcionais, ou seja, com sintomas físicos que não têm tradução complementar (os exames complementares de diagnóstico são normais e, no entanto, as pessoas continuam a queixar-se com sintomas físicos). Trata-se de casos de somatização onde os sintomas físicos estão sempre relacionados com factores de natureza psicológica, social, cultural, interpessoal, contrariando um pouco a tendência biomédica para explorar até ao tutano as queixas do doente, virando-o de pernas para o ar à procura de uma anomalia biológica qualquer. Na maior parte dos casos, esta anomalia não é encontrada, sendo, portanto, preferível olhar noutra direcção. Às vezes, trata-se somente de procurar o sítio onde as coisas estão. Quando falamos com doentes com sintomas somáticos funcionais, procuramos no organismo da pessoa e não encontramos nada. Contudo, se procurarmos na vida, na trajectória biográfica, nos contextos profissional e familiar, encontramos normalmente muita coisa que nos ajuda a compreender melhor o que se passa.

            É claro que a Psicossomática é importante, não só nestes casos de somatização, mas também noutros, noutras enfermarias onde as pessoas se apresentam com patologia orgânica e, associadamente, têm problemas de natureza psicológica (depressões, preocupações de natureza hipocondríaca, etc.). É, então, a Psicossomática que faz a ligação entre o que é orgânico e o que é psicológico, social ou interpessoal, constituindo-se, portanto, como fundamental na clínica, independentemente da especialidade.

 

Q: Em que medida a Psicossomática está presente na sua prática clínica?

           

Na consulta de Medicina Psicossomática estamos em estreita ligação com o Serviço de Medicina 3 – Reumatologia – e vemos sobretudo doentes com diagnóstico de Fibromialgia e Síndrome de Fadiga Crónica. O estatuto nosológico destas duas doenças é controverso, mas é possível que sejam as duas faces da mesma moeda. De facto, as pessoas que apresentam o Síndrome de Fadiga Crónica, isto é, que indicam o cansaço como sua principal queixa clínica, são pessoas que têm muitas vezes dores generalizadas e preenchem os critérios diagnóstico da Fibromialgia. Pelo contrário, as pessoas que têm Fibromialgia apresentam também um cansaço persistente, nervoso, com duração superior a seis meses, satisfazendo os critérios da Fadiga Crónica. Do ponto de vista biológico, existem várias teorias, mas nenhuma delas é universal ou consensual. Por isso, habituamo-nos a pensar quer a Fibromialgia quer a Fadiga Crónica como síndromes somáticos funcionais que pertencem ao espectro da somatização há pouco referido. São quadros clínicos controversos, que provavelmente já existiam há 100 ou 200 anos com outros nomes, e para os quais não encontramos ainda uma anomalia complementar que os explique do ponto de vista clínico.

            Por outro lado, há os tais factores de natureza psicológica, social e até biográfica, que muitas vezes podemos situar na infância e no processo de desenvolvimento, que ajudam a compreender porque é que as pessoas chegam a um ponto em que se justifica o diagnóstico de Fibromialgia ou de Fadiga Crónica.

 

 

Q: Poderá então ter a ver com a história de vida…

 

            Muitas vezes! Poderá ter a ver com episódios de vitimização na infância e/ou adolescência (por exemplo, maus tratos, situações de abuso, perda, negligência afectiva, maus cuidados parentais, ambiente familiar caótico…) que se encontram frequentemente, sendo fácil estabelecer a relação entre antecedentes biográficos e os diagnósticos posteriores. Contudo, esta não é uma relação de causa-efeito. O que observa na literatura e na clínica é que estes aspectos aparecem associados por um mecanismo que não é absolutamente consensual, nem claro, nem muito simples de explicar.

 

Q: Gostaríamos que nos falasse um pouco mais sobre a consulta de Medicina Psicossomática dos Hospitais da Universidade de Coimbra…

 

            Como já referi esta consulta nasceu em Janeiro de 2001 e actualmente conta comigo e com mais três internos de Psiquiatria. Estamos ainda em fase de organização, mas temos já consulta no Serviço de Medicina 3 a funcionar à Sexta-Feira à tarde. A consulta não tem ainda uma base de dados, mas temos fichas dos muitos doentes que já atendemos. A maior parte destes doentes é enviado da consulta de Reumatologia com diagnóstico de Fibromialgia. Os restantes pacientes apresentam o diagnóstico de Síndrome de Fadiga Crónica. São doentes que manifestam síndromes somáticos funcionais, que se queixam, no caso da Fibromialgia de dores no corpo todo ou de cansaço crónico, persistente e incapacitante. Ambos os sintomas implicam uma mudança drástica nas vidas das pessoas quer a nível pessoal, quer a nível familiar e profissional.

             Neste tipo de doentes encontramos aspectos importantes que não têm propriamente a ver com o motivo que as trouxe à consulta. Claro que num primeiro momento valorizamos as dores, as queixas somáticas. Num segundo momento da consulta damos atenção a outros aspectos que achamos estarem relacionados com a doença. À medida que vamos falando faz-se luz, aparece aquilo que para nós é verdadeiramente importante.

             Não sei exactamente quando começou o meu interesse pela Fibromialgia, mas recordo um episódio em que um colega da Reumatologia me pediu que visse uma paciente sua com esse diagnóstico. Esta mulher estava vestida de preto, chorava num luto carregado pelo marido, muito sofrida com dores. Aquilo que eu retirei da nossa conversa foi que a dor principal não era a dor do corpo. As dores principais tinham a ver, primeiro, com o facto de o marido ter morrido há pouco tempo e depois, mais importante ainda, com o facto de andar a ser caluniada na sua terra, onde afirmavam que a senhora tinha vários amantes.

 

Q: Para além da consulta de Medicina Psicossomática a funcionar nos Hospitais da Universidade de Coimbra, tem conhecimento de algum outro sítio do país onde essa consulta funcione?

 

            Não conheço exactamente o que se passa nos outros hospitais, mas penso que há departamentos de Psiquiatria de consulta-ligação. Esses departamentos habitualmente permitem um trabalho conjunto entre as enfermarias de Psiquiatria e as restantes enfermarias do hospital geral. Acredito que noutros hospitais, em Lisboa ou Porto, haja departamentos de Psiquiatria consulta-ligação, uma vez que há profissionais que se interessam e dedicam a essa sub especialidade da Psiquiatria, como alguns consideram.

 

Q: Considera que a abordagem psicossomática está presente no sistema nacional de saúde?

 

            A ideia que eu tenho é que os psiquiatras estão em posição privilegiada para valorizar essa abordagem. No entanto, os psiquiatras têm um estatuto um pouco marginal no âmbito das disciplinas médicas, sendo a Psiquiatria considerada mais ou menos obscura, clandestina… Daí que a focagem psicossomática que os psiquiatras fazem não tenha muito peso no âmbito da teoria e da prática da Medicina no nosso país. É preciso credibilizar a prática da Psiquiatria e convencer as pessoas de que a Psicossomática é importante em termos de saúde pública. A somatização é um enorme problema de saúde pública. Se pensarmos, por exemplo, no número de pessoas que todos os dias fazem exames complementares sem que os respectivos resultados revelem qualquer doença, na quantidade de pessoas que todos os dias vão a consultas no médico de família, no hospital geral, chegamos imediatamente à conclusão que a somatização é um problema de saúde pública. De facto, além dos custos públicos que todo este processo acarreta, há que ter em conta o sofrimento individual e o impacto em todas as esferas da vida do sujeito.

 

Q: Segundo o seu ponto de vista, é pertinente a divisão em escolas psicossomáticas e não psicossomáticas?

 

            Se considerarmos a Psicossomática no contexto da teoria Psicanalítica, faz sentido. Há pouco falámos nas doenças psicossomáticas e há muitos autores que continuam a falar de Psicossomática, valorizando este conceito em termos psicodinâmicos e enfatizando os conflitos psicológicos inconscientes.

            No entanto, a Psicossomática, na minha perspectiva, não é isso. A Psicossomática é a visão holista, é a visão do doente no seu todo, no seu contexto, nas suas diversas dimensões. Dado isto, a Psicossomática pode confundir-se com uma atitude, vendo o doente não só do ponto de vista biológico, mas também através das histórias clínica e de vida, das informações dos familiares, das aspirações que ficaram frustradas, do impacto que essas frustrações tiveram na sua vida…

 

Q: Considera que existe uma lacuna na formação dos psiquiatras e dos técnicos de saúde em geral nesta área?

 

            Sim, sim, penso que sim. Acho que esta atitude psicossomática nos faz falta na teoria e na prática clínica. Apesar de se citar constantemente o modelo biopsicossocial, o importante mesmo é tentar compreender a interacção entre as diferentes dimensões (biológico, psicológico, social…), de modo a, com esse entendimento e essa compreensão globais, ajudar da melhor forma o doente. É claro que muitas vezes isso não é fácil na prática, já que o modelo biopsicossocial é difícil de aplicar à cabeceira. Mas, é mais uma vez uma questão de atitude, de saber que é importante valorizar uns e outros aspectos.

 

 

 

Q: Ao lermos o último livro que editou – Cultura, Medicina e Psiquiatria (2001) –, pareceu-nos que este é, de certa forma, uma alternativa ou mesmo um desafio ao modelo biomédico tradicional, uma vez que apresenta uma visão holística do ser humano. É assim?

 

            Falo no modelo biopsicossocial como uma espécie de amuleto teórico, a que todos os profissionais recorrem para justificar a sua prática. Contudo, dada a dificuldade da sua aplicação prática, podemos tomá-lo como uma atitude, como um instrumento teórico e conceptual que nos ajuda a ver o doente no seu contexto. Os protestos contra a biomedicina resultam do facto desta privilegiar sistematicamente os factores biológicos, sacrificando os aspectos que, por vezes nos ajudam melhor a compreender o que se passa com o doente. Em algumas ocasiões, o que torna as coisas difíceis é o facto do próprio doente também valorizar os aspectos biológicos. A pessoa que vai ao médico, na maior parte das vezes, quer fazer um exame, procura um qualquer medicamento.

 

Q: Acha que actualmente existem defensores acérrimos do modelo biomédico que o pratiquem?

           

Do ponto de vista teórico, penso que não haverá ninguém que vos diga, por exemplo, que a dor crónica resulta de uma lesão orgânica que será identificada mais cedo ou mais tarde. Conceptualmente é muito difícil sustentar uma perspectiva biomédica estrita. No entanto, na prática da Medicina do dia-a-dia é isso que acontece, isto é, o que se privilegia é uma qualquer disfunção biológica, porque a solução terapêutica que encontramos é uma solução biológica. Vivemos em regime de compressão temporal. Temos muito pouco tempo. E temos também muito pouco tempo para ouvir o doente, para falar com ele, para estar com ele. A solução mais fácil, mais eficaz e mais cómoda é a solução farmacológica.

 

 

 

Q: A forma como o sistema nacional de saúde está constituído propicia a que estas situações aconteçam (poucos médicos, muitos doentes…)?

           

Nessa questão estão envolvidos factores macro, políticos, condicionantes externos que se reflectem directamente sobre a actividade clínica.

 

Q: Poderia comentar a seguinte frase citada nesse mesmo livro: “A pobreza é um importante factor de risco para o stress, para o suicídio, para a desintegração das famílias e para o abuso de substâncias.”?

 

            A Medicina é algo demasiado sério para ser entendida apenas pelos médicos. Há muitas vantagens no diálogo interdisciplinar: temos muito a aprender com os sociólogos, com os antropólogos… Quando se lida com a saúde e com a doença das pessoas temos que saber muito mais que Medicina, ainda que os conhecimentos médicos sejam absolutamente imprescindíveis. Deste modo, a Sociologia, na questão da pobreza e das desigualdades, a Antropologia, no que tem a ver com as variações culturais de crenças, sintomas, comportamentos de procura de ajuda são acréscimos preciosos, permitindo uma visão mais global do comportamento da pessoa. A Medicina que lida com o sofrimento humano deve espreitar o que acontece à escala global.

 

Q: A que níveis é possível intervir socialmente?

            Muitas vezes, e de acordo com um ditado antigo, temos que saber o que é que podemos fazer, o que é que não podemos fazer e a diferença entre as duas coisas. Muitas vezes não podemos fazer nada, noutras podemos impedir que a situação se agrave, noutras podemos pedir ajuda a alguém que esteja no terreno e possa intervir do ponto de vista social (técnicos de serviço social, por exemplo).

 

 

 

Q: No seu entender, O Erro de Descartes foi a separação entre o corpo e a mente como António Damásio defende?

 

            A grande dificuldade é fazer a ponte perfeita entre aquilo que é a emoção e aquilo que é a razão. Há uma certa tendência em separar as coisas, em dizer que uma antecede a outra. Mas a nossa vida é razão, a nossa vida é emoção e é difícil definir a natureza da interacção entre ambas.

 

Q: Será correcto assumir que as pessoas que não desenvolvem ou não possuem mecanismos de coping para enfrentar determinados acontecimentos de vida percepcionados como stressantes, são mais susceptíveis de desenvolver determinado tipo de patologias?

 

            Claro que há pessoas mais e menos vulneráveis! A vulnerabilidade não se reflecte apenas nas dimensões de coping. A pessoa pode ter estratégias de coping passivas que não lhe permitem confrontar-se com os problemas. Contudo, esse é apenas um índice de vulnerabilidade, pois as estratégias de coping interessam mais como factores de manutenção. Por exemplo, as pessoas que sofrem de dor crónica podem ter uma estratégia passiva, afirmando que “mais vale morrer” ou que “não sou capaz de fazer nada” ou, pelo contrário, adoptar um mecanismo de coping activo e dizer: “é melhor sair de casa e distrair-me com qualquer coisa”. Estes mecanismos de coping diferenciados, muitas vezes respondem pela evolução, pelo prognóstico que os diversos casos têm.

 

Q: Recorrendo à sua experiência clínica, é verosímil afirmar que existem certas características de personalidade específicas de pacientes que sofrem de doenças classicamente consideradas psicossomáticas (por exemplo, doenças alérgicas, úlceras duodenais…)?

 

            Traços de personalidade específicos não. Antigamente considerava-se que era assim, que havia constelações de personalidade que levavam directamente a determinado tipo de patologias. Havia uma lei de especificidade que afirmava exactamente isso: determinado tipo de conflitos levavam a determinado tipo de patologias. Actualmente, não pensamos assim, não falamos de doenças psicossomáticas. Quando olhamos para situações clínicas em que são importantes os factores de natureza psicológica, não encontramos um padrão de personalidade específica, embora possamos encontrar traços que são mais característicos de uma ou outra patologia. Por exemplo, as pessoas que sofrem de hipocondria têm por vezes traços de uma personalidade obsessiva. De igual modo, as pessoas que apresentam perturbação de somatização (evidenciam múltiplos sintomas em vários departamentos orgânicos) manifestam traços histriónicos. Fizeram-se muitos testes de personalidade com pessoas sofrendo de patologias deste tipo, usando sobretudo o MMPI-2. Os resultados mostraram que certas escalas apareciam sistematicamente elevadas em situações de dor crónica, em situações somáticas funcionais. No entanto, não há nenhuma especificidade e, portanto, não podemos dizer que existe uma constelação de personalidade específica das pessoas que desenvolvem este tipo de patologias consideradas psicossomáticas.

 

Q: A mesma questão levanta-se por vezes em relação à anorexia…

           

Sim, encontramos, por vezes, uma estrutura obsessiva nas jovens anorécticas, bem como uma certa rigidez ou inflexibilidade adaptativa e comportamentos de natureza compulsiva e ritualista. Há mesmo autores que dizem que a anorexia pertence ao espectro das perturbações obsessivo-compulsivas. A ideia que tenho é que o comportamento alimentar é das únicas, se não mesmo a única área da vida da jovem anoréctica sobre a qual ela tem algum controlo ou poder.

 

Q: Segundo Kennerly, o carácter mais especulativo que experimental de algumas explicações psicológicas para certas doenças, veio minar a credibilidade da Psicossomática. Neste sentido, o que é que o seguinte exemplo lhe suscita? “A respiração asmática seria como um grito de lamento pelo desejo violento e não concretizado de emancipação da criança e do adolescente. (…) Na vida adulta o quadro volta a aparecer já que o indivíduo não conseguiu romper a situação de dependência que mantinha com os pais dominadores, inseguros, ansiosos e incapazes de transmitir amor genuíno.”

 

            Tenho muita dificuldade em entrar nesse tipo de raciocínio, não compreendo! É um discurso hermético que não é susceptível de contra-prova, é irrefutável no sentido em que não há ninguém do lado de fora que o possa contrariar. O meu discurso é paralelo a esse e, portanto, ambos não se cruzam. Não vejo as coisas nessa perspectiva. Será difícil estabelecer um diálogo construtivo entre duas perspectivas tão antagónicas.

             Em Medicina, acho que faz mais sentido procurarmos do lado de fora. A Psicanálise procura sistematicamente o lado de dentro, sendo esta, na minha opinião, uma visão redutora. Claro que também estou consciente dos limites e dos perigos do determinismo cultural e social. Não é tudo cultura, não é tudo sociedade, não é tudo relações entre as pessoas…mas a verdade é que muito do que tem a ver com o sofrimento humano tem a ver com o facto da pessoa ser um animal social. Uma pessoa que sofre e se queixa de solidão não é porque está sozinha, é porque há outras pessoas que não estão presentes, é porque há outras pessoas. Se sofremos com uma ruptura afectiva, com problemas no casamento ou no trabalho é porque há outras pessoas, é porque há um contexto. Prefiro compreender e ajudar as pessoas em função do que lhes acontece, daquilo que é a sua experiência, mas ao mesmo tempo, daquilo que esta reflecte. E aquilo que a experiência transparece é que é algo que se passa do lado de fora, não nas nossas vísceras, na nossa alma.

            Em doenças como a Fibromialgia, é importante olharmos para a pessoa numa perspectiva longitudinal. Estamos com a pessoa pela primeira vez e falamos em dor, aceitando os sintomas e o sofrimento da pessoa como real. Quando, a certa altura, alargamos a “agenda” e procuramos os antecedentes pessoais, vemos muitas vezes que estas pessoas foram abusadas na infância, tiveram experiências de perda ou privação. Estas pessoas foram vulnerabilizadas quando eram crianças. À medida que esta vulnerabilidade inicial ou distal se cruza com contextos de vida negativos, a pessoa alimenta esta vulnerabilidade. Na idade adulta, quando a pessoa se confronta com um acontecimento de vida stressante, desenvolve e mantém sintomas de sofrimento, que resultam de uma forma mais ou menos directa de uma vulnerabilidade que está lá atrás. É por isso que eu acho que a Fibromialgia, enquanto processo, é algo dinâmico, eventualmente reversível se aquilo que acontece na vida das pessoas deixa de ser mau e passa a ser bom. É possível que em determinadas circunstâncias os factores sociais, por serem positivos, revertam uma situação má do ponto de vista clínico e que a pessoa regresse a um estado de homeostase.

 

Q: Perturbações mediatizadas como o stress podem ser entendidas como psicossomáticas?

 

            O stress tem carácter propulsivo e adaptativo no sentido em que nos mobiliza para a acção, desde que se encontre num intervalo óptimo. É possível que as pessoas fiquem mais atreitas até mesmo do ponto de vista biológico a algum tipo de doenças relacionadas com o stress. Sabe-se que pode haver alguma desregulação imunológica, a pessoa fica mais vulnerável. Há estudos que relatam alterações nos linfócitos T, responsáveis pelas nossas defesas, provocando uma maior susceptibilidade a infecções.

 

Q: Na sua perspectiva, até que ponto a relação mãe-filho ou o próprio padrão familiar podem condicionar o aparecimento e até, segundo alguns autores, a manutenção de algumas doenças psicossomáticas?

 

            O que eu posso dizer em relação a isso tem a ver basicamente com aquilo a que nós chamamos sintomas somáticos funcionais. A hiper-protecção parental, os cuidados excessivos por parte dos pais perante o mínimo sintoma que o filho apresente podem promover o comportamento de doença anormal na idade adulta. Por exemplo, uma mãe que privilegia as queixas somáticas em detrimento das queixas emocionais promove fenómenos de somatização na idade adulta. A criança aprende que, para que lhe dêem atenção, é preciso queixar-se de um sintoma físico, de uma dor…

 

Q: Acaba por ser um modo de funcionamento…

 

Acaba, por vezes, por ser um modo de estar, sobretudo se o processo se cristaliza na idade adulta.

            Por outro lado, a ausência de cuidados também é um importante preditor de somatização na idade adulta.

 

Q: O que lhe sugere a frase Quem Ama Não Adoece?

 

            É difícil estabelecermos uma relação de causa-efeito… Acho que compreendo o que se quer dizer nessa frase. As pessoas que não exteriorizam as emoções podem mais facilmente desenvolver patologia psicossomática. As pessoas alexitímicas que, portanto, têm uma incapacidade na expressão dos seus sentimentos, uma iliteracia emocional, utilizam uma linguagem somática para traduzir estados emocionais. Se, pelo contrário, as pessoas não se inibirem e exteriorizarem as suas emoções serão mais saudáveis e resistentes a qualquer tipo de patologia.

 

Professor Doutor Rui Paixão
 



Questão (Q): Como conceptualiza actualmente a psicossomática? Qual considera ser a importância da psicossomática nos dias de hoje?

Eu não sou um especialista, há aqui colegas meus que poderiam eventualmente esclarecer-vos melhor sobre esta temática do que eu.
De qualquer modo, poderia conceptualizar as doenças psicossomáticas através de três condições fundamentais: a patologia do caso clínico, os mecanismos subjacentes a esse quadro clínico e os elementos determinantes ou causais desse mesmo quadro clínico.
Esta formulação poderia dar resposta à questão que me coloca. De qualquer modo, não sendo especialista na matéria, considero que o conceito de psicossomática hoje, “é um conceito que poderá ter todas as condições para ser posto em causa, cada vez mais posto em causa”.
Neste sentido, inicialmente, o conceito de doença psicossomática tinha subjacente uma certa linearidade relacional entre o psiquismo e o somático. Cada vez mais, nós percebemos que esses modelos lineares são muito pouco operacionais na compreensão desse tipo de situações. Cada vez mais, a compreensão desse conjunto de situações clínicas nos revela que existe uma multiplicidade de factores, e que não são necessariamente factores de um mesmo nível, de uma mesma ordem, isto é, existem factores de natureza psicológica, factores de natureza somática. Há, inclusivamente, uma certa imbricação entre ambos e interagem uns com os outros, como vemos nas doenças alérgicas do foro respiratório, por exemplo; cada vez mais, é claro para nós que existem duas ordens de factores: factores de natureza somática, que podem ser genéticos e mecanismos psicológicos no facilitar do desencadear da situação clínica. É na confluência entre esses dois níveis, psicológico e somático, que as coisas surgem, sendo que cada um destes mecanismos é um universo.
Por isso, é que eu digo que a psicossomática se encontra numa posição de ser posta em causa, porque hoje cada vez mais, eu creio que na medicina existe, e se não existe deveria haver, esta compreensão, de que tudo é psicossomático, tudo é psicológico, tudo é somático. Mas também é muito mais do que isto. Quando digo que tudo é psicossomático, eu estou a dizer que eventualmente num grande número de situações clínicas, as variáveis de natureza psicológica e social também são variáveis que devem ser levadas em conta. É evidente que isto não põe em causa o conceito de psicossomática na especificidade com que eu o defini inicialmente com aqueles três níveis. Nessa especificidade, o conceito da psicossomática afasta-se de muitas outras patologias médicas relativamente específicas. As fronteiras, os limites, os contornos, são hoje cada vez mais fluidos e pontuais e levam-nos a questões tão complexas quanto a das patologias. Por exemplo, toda a problemática das doenças infecto-contagiosas não tem, em rigor, nada a ver com mecanismos de natureza psicológica. Mas os estudos sobre suporte social e as estruturas de suporte social evidenciam que a evolução epidemiológica de doenças dessa natureza está correlacionada com fracos níveis de suporte. Concretamente, é mais fácil uma epidemia desenvolver-se entre núcleos de pessoas onde a estrutura do suporte social é frágil do que entre núcleos de pessoas, comunidades, onde a estrutura do suporte social é mais forte. É evidente que isto é complexo, porque as variáveis parasitas, confundentes, poderão estar aqui associadas, poderão resolver facilmente esta questão e poderão justificar isto de uma outra forma. De qualquer modo, levantam-nos imensas questões.
Por outro lado, existem outras patologias hoje, nomeadamente as cancerosas, sobre as quais nos questionamos acerca da importância de certos factores e mecanismos.
Isto tudo para dizer que a evolução, não sendo médico, não sendo especialista, e sendo este um campo onde também é fácil dizer-se muitos disparates e portanto, protegendo-me em relação a isso, eu diria que o sentido actual leva-nos antes de mais a sobrevalorizar na medicina, na clínica médica, cada vez mais outro tipo de variáveis que não e apenas as variáveis de natureza biológica. De tal modo, o conceito de psicossomática tal como eu o defini inicialmente poderá acabar por se tornar irrelevante e no fundo chegar a este estádio onde tudo é psicossomático e haver a necessidade, então, de uma outra especificação do conceito de psicossomática. Isto é complexo, porque acabaríamos paradoxalmente por voltar outra vez ao princípio.




Q: Em que medida a psicossomática está presente na sua prática clínica?

Bom…actualmente na minha prática clínica, eu diria que não está muito presente, por esta razão: os clientes que nos procuram, eles próprios fazem já uma definição do problema que transportam. Todos nós fazemos definições dos problemas. A definição do problema é o enquadramento e normalmente, ao contrário do que acontecia aqui há uns anos atrás, as pessoas já nos trazem um enquadramento que é claramente psicológico, quer dizer, uma definição mental do seu problema, onde, de facto, as variáveis valorizadas são as variáveis psicológicas e restringem-se um pouco a esse domínio. É evidente que a continuidade do trabalho clínico leva-nos sempre a algum sítio psicossomático, porque se formos ver no fundo o que é a psicossomática, tal como eu a defini inicialmente, encontramos um grupo de patologias médicas, da clínica, descobrimos que envolve um conjunto de mecanismos e envolve determinantes causais. No fundo, isto é o falhanço de mecanismos mentais, o falhanço da mente em conter a sua própria dor de tal modo que extravasa para outros domínios, neste caso para o físico.

Q: Mas acha que extravasa sempre ou só em algumas situações?

Não, não extravasa sempre. Podemos ver, por exemplo a psicopatologia do bebé, a qual eu quase diria que é naturalmente uma psicopatologia da psicossomática, porque é o corpo que está em causa. O bebé não tem as capacidades mentais para lidar com as suas dificuldades e naturalmente é o corpo, que é o nível mais arcaico da nossa organização, que é colocado em causa. Se quisermos ver pelo plano genético, evolutivo, podemos dizer que o nível mais arcaico é o corporal, o segundo nível é o comportamental e o terceiro nível é o mental. Sempre que há perturbações, sempre que há dificuldades, pode haver involução, isto é a regressão como forma de defesa contra essas dificuldades; a regressão é logo a primeira forma de defesa contra essas dificuldades. Se nós não temos capacidade de responder a uma problemática interna ou uma problemática relacional, evoluímos de algum modo na procura de resposta para essa mesma problemática, eventualmente até ao nível corporal, porque quando o falhanço de outros mecanismos mentais é rigoroso, então é o corpo que responde a isso, em função também de mecanismos corporais.
Esta última é uma leitura psicológica estrita, mas não exclui a leitura somática de mecanismos corporais, porque os mecanismos corporais também têm alguma coisa de psicológico. Podemos pôr a questão de por que é que, por exemplo, certas pessoas são mais frágeis somaticamente a um determinado nível e outras são mais frágeis a um outro nível; por que é que umas respondem com hipertensão arterial, por exemplo, e outras respondem de uma outra maneira. Podemos inclusivamente inverter a nossa própria resposta.

Q: Segundo o seu ponto de vista, é pertinente a divisão em escolas psicossomáticas e não psicossomáticas?

Todas as divisões fazem de algum modo sentido, desde logo porque até cientificamente nós estamos divididos na base. Até de um ponto de vista prático faz sentido, porque existem especialidades, porque não conseguimos controlar tudo. Portanto, se a pergunta vai nesse sentido, se concordo com essa divisão, se a divisão é operacional, se facilita a existência de especialistas, eu concordo.
Porém, se a divisão é apenas uma leitura, uma espécie de bandeira ou um pouco mais que isso, é evidente que não.

Q: Considera que a abordagem psicossomática é de certa forma uma alternativa, ou mesmo um desafio ao modelo biomédico tradicional uma vez que apresenta uma visão holística do ser humano?

Uma boa parte dessa questão têm a ver com o conceito de psicossomática.
Eu depreendo, do modo como estão a colocar a questão, que têm uma visão da psicossomática que eu diria que é abrangente.
Eu estou a focar a psicossomática como um contexto relativamente específico. Aquilo a que chamamos clinicamente patologias psicossomáticas são certos eczemas, certas asmas na criança na psicopatologia infantil e juvenil; depois no adulto certas patologias como a hipertensão arterial, as úlceras, etc. Existe todo um conjunto de patologias que estão previstas clinicamente, portanto têm o seu significado clínico, funcionam sob determinados mecanismos, quer somáticos, quer psicológicos e têm um determinante que é importante e que deve ser encontrado em determinados elementos de natureza psicológica.
Hoje cada vez mais percebemos que, não havendo elementos determinantes causais de natureza psicossocial em muitas outras patologias e até na esmagadora maioria, há no entanto variáveis, factores psicológicos, sociais, ou de outro nível que não são claramente somáticos e que cada vez mais podem ser considerados importantes para a questão médica. Neste sentido, eu não diria claramente que a medicina cada vez mais tem de ser psicossomática, eu diria que provavelmente cada vez mais a medicina tem que ser psicológica, sociológica, económica, até histórica, geográfica, cultural, etc. A visão médica cada vez mais tem que abandonar a clivagem profundamente enraizada de uma visão somática, linear e empobrecedora para uma outra visão muito mais englobante, mas também muito mais complexa e que não toma apenas e necessariamente a psicologia como variável fundamental. Portanto, nesse sentido estamos de acordo. Contudo, no sentido da psicossomática em que todas as doenças têm uma causa psicológica não, claramente não. No sentido de psicossomática em que todas as patologias têm implícitas variáveis de natureza psicológica, isso sim, com certeza, todas as patologias, quaisquer que elas sejam, têm variáveis de natureza psicológica, como também têm de natureza social, económica, eventualmente cultural, etc.

Q: No seu entender, o Erro de Descartes foi a separação entre o corpo e a mente como António Damásio defende?

É uma questão de uma complexidade que provavelmente não daria para abordar de uma forma tão curta. Eu diria apenas assim: há erros que, paradoxalmente, o deixam de ser porque são necessários. Isto é, nós funcionamos por categorias, por representações mentais. O holismo, digamos, o englobante, que na filosofia tem tido inúmeras designações, é sempre classificado da mesma maneira em todos os sistemas e em todos os discursos como incognoscível. O todo ou o tudo é o incognoscível.
Como é que os humanos têm alcançado o conhecimento senão através do erro? Deste erro? Que é o erro metodológico de base da ciência, que é o erro da divisão operacional.
Qual é a paradoxalidade da crítica? É que ele próprio também está a fazer isso, ele próprio tem que fazer isso. É o erro que é necessário, é o erro que é metodológico.
Descartes nunca defendeu uma independência, uma autonomia.

Q: Será correcto assumir que as pessoas que não desenvolvem ou não possuem mecanismos de coping para enfrentar determinados acontecimentos de vida percepcionados como stressantes, são mais susceptíveis de desenvolver determinado tipo de patologias?

A noção de coping é uma noção claramente derivada do cognitivismo.
Nós falamos de uma outra coisa, nós falamos de defesas. No modelo escolástico em que me enquadro, prefiro antes falar de defesas e é um pouco diferente da ideia de coping. A ideia de coping e ideia de defesa são duas ideias relativamente diferentes.
Não é que as pessoas não desenvolvam esses mecanismos, as pessoas desenvolvem é sistemas diferentes, coping diferentes, desenvolvem mecanismos de defesa diferentes.
Todas as pessoas têm defesas, como todas as pessoas têm mecanismos de coping, mas o que eu quero dizer é que alguns desses mecanismos serão mais evoluídos e outros serão menos evoluídos; a própria doença psicossomática é uma estratégia. A agressão física, a violência física é também uma estratégia, um mecanismo. Podemos considerar, e se calhar com toda a justiça, que são mecanismos de um outro nível, eventualmente mais arcaicos, mais desviantes no sentido psicopatológico mesmo, diferentes de outros mecanismos onde a problemática é fundamentalmente transformada sem a necessidade de se atingir o ego.
Mas na minha perspectiva, não coloco as coisas linearmente e apenas em termos de mecanismos mentais. Podemos falar aqui de coping, mas eu preferia aqui falar de mecanismos mentais, porque, reparem, isto tem também a ver um pouco com Descartes, como falámos há pouco: nós separamos as coisas na necessidade que temos de as estudar, dividimos as coisas. Numa outra dimensão, não devemos perder de vista a necessária integração que temos que fazer das próprias coisas porque, por exemplo, vocês falam de mecanismos de coping. Seguramente, os mecanismos de coping estarão interligados a uma grande quantidade de outros mecanismos mentais, e é essa integração que lhes dá alguma legitimidade. Eles não existem por si. O mesmo acontece com os mecanismos de defesa e é nesse sentido que os mecanismos de defesa são relativamente importantes, não por si mas porque estão interligados. A natureza da angústia vivida pelo indivíduo e a tipologia das relações que mantém com as suas coisas internas e com as pessoas exteriores a ele próprio, é aí que esses mecanismos ganham significado e que podemos dizer que efectivamente há um conjunto de mecanismos que estão muito mais próximos da resposta psicossomática do que outros mecanismos. Mas porque é que estes mecanismos estão mais próximos da resposta psicossomática? Porque se integram nesta estrutura mental, tipo de angústias, tipo de sujeito, tipo de relações que estabelece consigo e com os outros e tudo isto são peças que se enquadram. Então, a resposta típica será numa personalidade do tipo psicossomático, eventualmente noutra personalidade do tipo comportamental, eventualmente noutra personalidade ainda de tipo neurótico.

Q: Recorrendo à sua experiência clínica é verosímil afirmar que existem certas características de personalidade específicas de pacientes que sofram de doenças classicamente consideradas psicossomáticas, como as doenças alérgicas e úlceras duodenais?

Na literatura isto é muito discutido. Eu, pessoalmente, diria ter constatado isto na minha prática clínica, na prática de vida e se calhar mais na prática de vida. Algumas das personalidades claramente psicossomáticas que tenho conhecido ao longo da vida revelam de uma forma quase esmagadora essa tipologia, essa estrutura mental, que tem sido muito identificada, muito discutida na literatura clínica. Eu refiro-me claramente à organização do psiquismo do psicossomático, uma organização onde a fantasia, a imaginação, a capacidade de pensar o abstracto, os afectos, aquilo que é subjectivo, é completamente atacado e aquilo que fica é apenas a concretude. Ela (a concretude) seria a marca mais importante da personalidade psicossomática, são pessoas que não têm capacidade de imaginar, de fantasiar, até de brincar. São pessoas que a concretude das coisas concretas, a realidade, o sentir mais rigoroso, é a única coisa que existe, que são incapazes de aferir, de lidar, e nesse sentido são personalidades muito pobres, mentalmente pobres, absolutamente cinzentas, com grandes dificuldades relacionais com os outros, que organizam o stress com muita facilidade, exactamente porque a realidade tem este peso absoluto, não existe mais nada.
Todos nós somos psicossomáticos, todos nós temos algum sítio da nossa própria realidade mental, onde eventualmente podemos dar uma resposta psicossomática, isto é o mesmo que dizer que todos nós somos psicopatologicamente histéricos, psicopatologicamente obsessivos. O que é que eu quero dizer com isto? Todos nós temos toda a realidade psicopatológico dentro de nós próprios. Aquilo que existe na realidade psicopatológica pura existe de uma outra forma também nas personagens ditas normais. Há uma diferença que as afasta umas das outras, que é uma diferença de quantidade. E podemos questionar também se não será uma diferença de qualidade, na medida em que a quantidade introduz níveis de qualidade diferente. Portanto, o que eu quero dizer com isto, é que quando me refiro àquilo que eu tenho visto nesta experiência de vida, mais prática que clínica (a prática clínica faz todo o sentido se a perguntarem a um médico, porque as pessoas com este tipo de patologias vão ao médico, não vão ao psicólogo), tem a ver com esta incapacidade de fantasia, de concretude. Nem sequer lhes passa pela cabeça que o médico lhes diga qualquer coisa que não seja aquilo que lhes confirma a sua patologia médica, isso seria uma coisa ofensiva. Por isso é que eu digo que é mais prática de vida do que prática clínica. Sei de imensos psicossomáticos, até clinicamente psicossomáticos, que de facto confirmam a existência dessas características. Porém não fiz nenhum estudo, não posso dizer se é universal.

Q: Segundo Kennerly, o carácter mais especulativo que experimental de algumas explicações psicológicas para certas doenças, veio minar a credibilidade da psicossomática.
Neste sentido, o que é que o seguinte exemplo lhe suscita? “A respiração asmática seria como um grito de lamento pelo desejo violento e não concretizado de emancipação da criança e do adolescente. (…) Na vida adulta o quadro volta a aparecer já que o indivíduo não conseguiu romper com a situação de dependência que mantinha com os pais dominadores, inseguros, ansiosos e incapazes de transmitir amor genuíno.”


As patologias do chamado foro respiratório, asmas, asmas alérgicas, certas patologias da pele, mas basicamente as patologias do foro respiratório apresentam uma característica sistemática que é o facto de se apresentarem na infância.
As patologias alérgicas já não são vistas como eram há uns sete, oito, nove, dez anos atrás. Hoje claramente compreendemos que tudo isto é mediado por mecanismos de natureza somática, o que faz com que afirmações destas possam ser criticadas, até pelo ridículo. Se vocês apresentarem isto a um dermatologista de uma escola somática clara, ele provavelmente é capaz de se rir às gargalhadas. Porquê? Porque hoje já se conhecem os mecanismos somáticos, a descrição dos alvéolos pulmonares, a resposta dos alvéolos pulmonares, a descrição do agente tóxico/alérgico, que determina a alergia, existe inclusivamente a descrição dos mecanismos somáticos relativos à alergia. Isto quer dizer que, muitas vezes, estes mecanismos não são causais: eventualmente, existirão outros mecanismos causais e esses são apenas os mecanismos que dão resposta, que fazem a doença, digamos.
Na minha experiência tenho verificado que a maior parte destas alergias desaparecem durante a pré-adolescência, adolescência, isto é, involuem completamente. São muito raros aqueles que mantêm a resposta, mas também existem. Nunca fiz nenhum estudo, mas a sensação com que fico é que são apenas uma pequena percentagem aqueles, que com a chegada da adolescência, não evoluem num outro nível, não desaparece completamente esse tipo de resposta. Isto põe evidentemente uma questão que poderá ser, eventualmente, a questão que esse médico está aí a colocar, que é a questão da separação/autonomia. Reparem, se olharem para a criança como eu vos dizia há pouco: a criança em virtude das suas dificuldades mentais. A criança não tem ainda a maturidade mental do adulto, a capacidade de lidar com os elementos da realidade que os adultos têm, daí que muitas vezes as respostas que uma criança dá são necessariamente respostas de natureza corporal. Eu afirmo, a diferença que está entre uma criança que à segunda-feira de manhã detesta a escola e diz que lhe dói a cabeça para não ir à escola e a criança que efectivamente lhe dói a cabeça, não é muito grande, elas estão muito próximas uma da outra. A facilidade com que elas passam para o registo psicossomático, é que as identifica claramente, porque a criança que diz que lhe dói a cabeça para não ir à escola é a criança que facilmente lhe passará efectivamente a doer a cabeça, que facilmente ficará maldisposta. Portanto, organiza uma resposta somática, que não é falsa, independentemente de, aos olhos do pai e aos olhos da mãe, parecer que ela está a fazer de conta. A criança é levada ao médico e este diz que não há motivo aparente para ela estar a dar esta resposta, mas efectivamente ela dá-a! Poderá estar a ser mentirosa? Pode eventualmente, mas também pode não estar a ser e a proximidade que há entre ambas é quase justaposta. O que quer dizer que a resposta psicossomática, de facto, é uma resposta que está muito próxima da criança, é uma resposta que lhe é fácil de dar, exactamente pela dificuldade que tem de dar outro tipo de respostas, mentais, por exemplo, apresentar patologia, mas com sintoma mental, o que tem que ver com a fragilidade intrínseca da sua própria existência. E um dos aspectos fundamentais dessa fragilidade, para além da ineficácia dos mecanismos mentais, é a dependência. Quando chega à adolescência, um dos aspectos fundamentais que está em jogo é a reformulação dessas fragilidades, dessas fraquezas, é a alteração dos registos de dependência, é a autonomia, é a individuação, é a existência de uma outra identidade. Portanto, é partir para uma outra realidade, para um outro nível. Assim, é natural que esse sintoma na infância, sintoma que está correlacionado com realidade infantil, nomeadamente com a dependência, com a ausência de mecanismos mentais, deixe de fazer sentido quando se chega à adolescência e se procure um outro sintoma, porque aquele já não responde ao problema. Assim, se foi isso que eu percebi que esse médico estava de algum modo a dizer, eu concordo. Concordo até que a mãe às vezes possa ser representada desse modo, simbolicamente! Mas isso são representações, são simbolismos.


Q: Doenças mediatizadas como a depressão, stress e distúrbios alimentares podem ser entendidas como doenças psicossomáticas? Se sim, de que forma?

Não. Todas essas podem e não podem. Voltamos outra vez à primeira questão. Seguindo a concepção estrita do que é uma doença psicossomática, não considero essas doenças como doenças psicossomáticas. Não identificaria nenhuma dessas situações como doenças psicossomáticas, são doenças de natureza psicológica.
Por exemplo em relação à anorexia mental, Elísio de Moura define-a de uma forma sucinta e clara: “ a anorexia mental não é uma doença do apetite, a anorexia mental é uma doença da vontade em ter apetite, nomeadamente da falta de vontade em ter apetite”.
Na bulimia agrupam-se sintomas, mais uma vez, de coisas que podem ser muito diferentes. Existem bulimias e bulimias. Também existem anorexias mentais e anorexias mentais, mas as diferenças entre ambas as anorexias são menos significativas em termos estruturais, do que as diferenças entre as bulimias. Um psicossomático pode ser bulímico, perfeitamente, mas isso é outra coisa.

Q: Até que ponto, na sua opinião, a relação mãe-filho ou o próprio padrão familiar podem condicionar o aparecimento, e até, segundo alguns autores, a manutenção de algumas doenças psicossomáticas?

Pode, totalmente. Eu diria que, pelo menos, de duas maneiras, possivelmente mais que duas. Uma delas, a relacional, as modalidades de relação que essa mãe organiza e que esse bebé eventualmente também está preparado para organizar (não é só a mãe que organiza, o bebé é um agente activo na relação), por um lado. Por outro lado, a própria constituição física desse bebé. Digamos, a psicossomática nasce dessas duas correlações. A resposta psicossomática que esse bebé pode dar, não é necessariamente igual à que outro bebé em condições relacionais semelhantes poderá dar.


Q: O que é que lhe sugere a frase: “Quem ama, não adoece”.

Eu não diria que quem ama não adoece, eu diria que quem ama adoece de uma maneira diferente. Também adoece, mas adoece de uma maneira diferente.