Entrevistas com os Professores Doutor Rui Paixão Doutor Manuel João Carrilho
|
---|
“Todo e qualquer estímulo, incluindo psicossocial que perturba o funcionamento do organismo, o perturba como um todo.”
Cannon
Frederic Chopin, um caso Psicossomático?
|
Professor Doutor Manuel João Quartilho
Manuel João Rodrigues Quartilho é psiquiatra no Hospital da Universidade de Coimbra e Professor Auxiliar da Faculdade de Medicina. No âmbito das suas actividades clínicas e pedagógicas, tem manifestado um interesse particular pelos fenómenos de somatização, no contexto clínico, bem como pelos aspectos sociais e culturais da teoria e prática médicas. Fez dois estágios académicos, nos Departamentos de Medicina Social e Antropologia da Universidade de Harvard, e no Departamento de Psiquiatria Social e Transcultural da Universidade McGill. Obteve uma Menção Honrosa do Prémio Bial, em 1998, com o trabalho “ Somatização: conceitos, avaliação e tratamento.”
Questão (Q): Como conceptualiza actualmente a Psicossomática?
A Psicossomática é um termo com uma longa história na Medicina. Talvez seja bom situar o início do termo nos anos 60, já que foi mais ou menos nesta altura que se começou a falar das chamadas doenças psicossomáticas. O que se pensava na altura era que essas doenças resultavam de um conflito psicológico mal resolvido. A expressão doença psicossomática tinha uma conotação psicodinâmica, psicanalítica, pensando-se, portanto, que havia um conflito inconsciente. Hoje em dia, não se pensa que haja propriamente doenças psicossomáticas. O que se considera actualmente é que todas as doenças, de uma maneira geral, estão sujeitas à influência positiva ou negativa de factores psicológicos e, portanto, em vez de falarmos de doenças psicossomáticas, falamos de processos psicossomáticos.
Q: Qual considera ser a importância da Psicossomática nos dias de hoje?
A Psicossomática é uma das minhas áreas de interesse. Acho que esta área é muito importante, na medida em que faço parte da consulta de Medicina Psicossomática dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Esta consulta começou em Janeiro de 2001 e recebemos sobretudo pessoas que se apresentam com queixas físicas funcionais, ou seja, com sintomas físicos que não têm tradução complementar (os exames complementares de diagnóstico são normais e, no entanto, as pessoas continuam a queixar-se com sintomas físicos). Trata-se de casos de somatização onde os sintomas físicos estão sempre relacionados com factores de natureza psicológica, social, cultural, interpessoal, contrariando um pouco a tendência biomédica para explorar até ao tutano as queixas do doente, virando-o de pernas para o ar à procura de uma anomalia biológica qualquer. Na maior parte dos casos, esta anomalia não é encontrada, sendo, portanto, preferível olhar noutra direcção. Às vezes, trata-se somente de procurar o sítio onde as coisas estão. Quando falamos com doentes com sintomas somáticos funcionais, procuramos no organismo da pessoa e não encontramos nada. Contudo, se procurarmos na vida, na trajectória biográfica, nos contextos profissional e familiar, encontramos normalmente muita coisa que nos ajuda a compreender melhor o que se passa. É claro que a Psicossomática é importante, não só nestes casos de somatização, mas também noutros, noutras enfermarias onde as pessoas se apresentam com patologia orgânica e, associadamente, têm problemas de natureza psicológica (depressões, preocupações de natureza hipocondríaca, etc.). É, então, a Psicossomática que faz a ligação entre o que é orgânico e o que é psicológico, social ou interpessoal, constituindo-se, portanto, como fundamental na clínica, independentemente da especialidade.
Q: Em que medida a Psicossomática está presente na sua prática clínica?
Na consulta de Medicina Psicossomática estamos em estreita ligação com o Serviço de Medicina 3 – Reumatologia – e vemos sobretudo doentes com diagnóstico de Fibromialgia e Síndrome de Fadiga Crónica. O estatuto nosológico destas duas doenças é controverso, mas é possível que sejam as duas faces da mesma moeda. De facto, as pessoas que apresentam o Síndrome de Fadiga Crónica, isto é, que indicam o cansaço como sua principal queixa clínica, são pessoas que têm muitas vezes dores generalizadas e preenchem os critérios diagnóstico da Fibromialgia. Pelo contrário, as pessoas que têm Fibromialgia apresentam também um cansaço persistente, nervoso, com duração superior a seis meses, satisfazendo os critérios da Fadiga Crónica. Do ponto de vista biológico, existem várias teorias, mas nenhuma delas é universal ou consensual. Por isso, habituamo-nos a pensar quer a Fibromialgia quer a Fadiga Crónica como síndromes somáticos funcionais que pertencem ao espectro da somatização há pouco referido. São quadros clínicos controversos, que provavelmente já existiam há 100 ou 200 anos com outros nomes, e para os quais não encontramos ainda uma anomalia complementar que os explique do ponto de vista clínico. Por outro lado, há os tais factores de natureza psicológica, social e até biográfica, que muitas vezes podemos situar na infância e no processo de desenvolvimento, que ajudam a compreender porque é que as pessoas chegam a um ponto em que se justifica o diagnóstico de Fibromialgia ou de Fadiga Crónica.
Q: Poderá então ter a ver com a história de vida…
Muitas vezes! Poderá ter a ver com episódios de vitimização na infância e/ou adolescência (por exemplo, maus tratos, situações de abuso, perda, negligência afectiva, maus cuidados parentais, ambiente familiar caótico…) que se encontram frequentemente, sendo fácil estabelecer a relação entre antecedentes biográficos e os diagnósticos posteriores. Contudo, esta não é uma relação de causa-efeito. O que observa na literatura e na clínica é que estes aspectos aparecem associados por um mecanismo que não é absolutamente consensual, nem claro, nem muito simples de explicar.
Q: Gostaríamos que nos falasse um pouco mais sobre a consulta de Medicina Psicossomática dos Hospitais da Universidade de Coimbra…
Como já referi esta consulta nasceu em Janeiro de 2001 e actualmente conta comigo e com mais três internos de Psiquiatria. Estamos ainda em fase de organização, mas temos já consulta no Serviço de Medicina 3 a funcionar à Sexta-Feira à tarde. A consulta não tem ainda uma base de dados, mas temos fichas dos muitos doentes que já atendemos. A maior parte destes doentes é enviado da consulta de Reumatologia com diagnóstico de Fibromialgia. Os restantes pacientes apresentam o diagnóstico de Síndrome de Fadiga Crónica. São doentes que manifestam síndromes somáticos funcionais, que se queixam, no caso da Fibromialgia de dores no corpo todo ou de cansaço crónico, persistente e incapacitante. Ambos os sintomas implicam uma mudança drástica nas vidas das pessoas quer a nível pessoal, quer a nível familiar e profissional. Neste tipo de doentes encontramos aspectos importantes que não têm propriamente a ver com o motivo que as trouxe à consulta. Claro que num primeiro momento valorizamos as dores, as queixas somáticas. Num segundo momento da consulta damos atenção a outros aspectos que achamos estarem relacionados com a doença. À medida que vamos falando faz-se luz, aparece aquilo que para nós é verdadeiramente importante. Não sei exactamente quando começou o meu interesse pela Fibromialgia, mas recordo um episódio em que um colega da Reumatologia me pediu que visse uma paciente sua com esse diagnóstico. Esta mulher estava vestida de preto, chorava num luto carregado pelo marido, muito sofrida com dores. Aquilo que eu retirei da nossa conversa foi que a dor principal não era a dor do corpo. As dores principais tinham a ver, primeiro, com o facto de o marido ter morrido há pouco tempo e depois, mais importante ainda, com o facto de andar a ser caluniada na sua terra, onde afirmavam que a senhora tinha vários amantes.
Q: Para além da consulta de Medicina Psicossomática a funcionar nos Hospitais da Universidade de Coimbra, tem conhecimento de algum outro sítio do país onde essa consulta funcione?
Não conheço exactamente o que se passa nos outros hospitais, mas penso que há departamentos de Psiquiatria de consulta-ligação. Esses departamentos habitualmente permitem um trabalho conjunto entre as enfermarias de Psiquiatria e as restantes enfermarias do hospital geral. Acredito que noutros hospitais, em Lisboa ou Porto, haja departamentos de Psiquiatria consulta-ligação, uma vez que há profissionais que se interessam e dedicam a essa sub especialidade da Psiquiatria, como alguns consideram.
Q: Considera que a abordagem psicossomática está presente no sistema nacional de saúde?
A ideia que eu tenho é que os psiquiatras estão em posição privilegiada para valorizar essa abordagem. No entanto, os psiquiatras têm um estatuto um pouco marginal no âmbito das disciplinas médicas, sendo a Psiquiatria considerada mais ou menos obscura, clandestina… Daí que a focagem psicossomática que os psiquiatras fazem não tenha muito peso no âmbito da teoria e da prática da Medicina no nosso país. É preciso credibilizar a prática da Psiquiatria e convencer as pessoas de que a Psicossomática é importante em termos de saúde pública. A somatização é um enorme problema de saúde pública. Se pensarmos, por exemplo, no número de pessoas que todos os dias fazem exames complementares sem que os respectivos resultados revelem qualquer doença, na quantidade de pessoas que todos os dias vão a consultas no médico de família, no hospital geral, chegamos imediatamente à conclusão que a somatização é um problema de saúde pública. De facto, além dos custos públicos que todo este processo acarreta, há que ter em conta o sofrimento individual e o impacto em todas as esferas da vida do sujeito.
Q: Segundo o seu ponto de vista, é pertinente a divisão em escolas psicossomáticas e não psicossomáticas?
Se considerarmos a Psicossomática no contexto da teoria Psicanalítica, faz sentido. Há pouco falámos nas doenças psicossomáticas e há muitos autores que continuam a falar de Psicossomática, valorizando este conceito em termos psicodinâmicos e enfatizando os conflitos psicológicos inconscientes. No entanto, a Psicossomática, na minha perspectiva, não é isso. A Psicossomática é a visão holista, é a visão do doente no seu todo, no seu contexto, nas suas diversas dimensões. Dado isto, a Psicossomática pode confundir-se com uma atitude, vendo o doente não só do ponto de vista biológico, mas também através das histórias clínica e de vida, das informações dos familiares, das aspirações que ficaram frustradas, do impacto que essas frustrações tiveram na sua vida…
Q: Considera que existe uma lacuna na formação dos psiquiatras e dos técnicos de saúde em geral nesta área?
Sim, sim, penso que sim. Acho que esta atitude psicossomática nos faz falta na teoria e na prática clínica. Apesar de se citar constantemente o modelo biopsicossocial, o importante mesmo é tentar compreender a interacção entre as diferentes dimensões (biológico, psicológico, social…), de modo a, com esse entendimento e essa compreensão globais, ajudar da melhor forma o doente. É claro que muitas vezes isso não é fácil na prática, já que o modelo biopsicossocial é difícil de aplicar à cabeceira. Mas, é mais uma vez uma questão de atitude, de saber que é importante valorizar uns e outros aspectos.
Q: Ao lermos o último livro que editou – Cultura, Medicina e Psiquiatria (2001) –, pareceu-nos que este é, de certa forma, uma alternativa ou mesmo um desafio ao modelo biomédico tradicional, uma vez que apresenta uma visão holística do ser humano. É assim?
Falo no modelo biopsicossocial como uma espécie de amuleto teórico, a que todos os profissionais recorrem para justificar a sua prática. Contudo, dada a dificuldade da sua aplicação prática, podemos tomá-lo como uma atitude, como um instrumento teórico e conceptual que nos ajuda a ver o doente no seu contexto. Os protestos contra a biomedicina resultam do facto desta privilegiar sistematicamente os factores biológicos, sacrificando os aspectos que, por vezes nos ajudam melhor a compreender o que se passa com o doente. Em algumas ocasiões, o que torna as coisas difíceis é o facto do próprio doente também valorizar os aspectos biológicos. A pessoa que vai ao médico, na maior parte das vezes, quer fazer um exame, procura um qualquer medicamento.
Q: Acha que actualmente existem defensores acérrimos do modelo biomédico que o pratiquem?
Do ponto de vista teórico, penso que não haverá ninguém que vos diga, por exemplo, que a dor crónica resulta de uma lesão orgânica que será identificada mais cedo ou mais tarde. Conceptualmente é muito difícil sustentar uma perspectiva biomédica estrita. No entanto, na prática da Medicina do dia-a-dia é isso que acontece, isto é, o que se privilegia é uma qualquer disfunção biológica, porque a solução terapêutica que encontramos é uma solução biológica. Vivemos em regime de compressão temporal. Temos muito pouco tempo. E temos também muito pouco tempo para ouvir o doente, para falar com ele, para estar com ele. A solução mais fácil, mais eficaz e mais cómoda é a solução farmacológica.
Q: A forma como o sistema nacional de saúde está constituído propicia a que estas situações aconteçam (poucos médicos, muitos doentes…)?
Nessa questão estão envolvidos factores macro, políticos, condicionantes externos que se reflectem directamente sobre a actividade clínica.
Q: Poderia comentar a seguinte frase citada nesse mesmo livro: “A pobreza é um importante factor de risco para o stress, para o suicídio, para a desintegração das famílias e para o abuso de substâncias.”?
A Medicina é algo demasiado sério para ser entendida apenas pelos médicos. Há muitas vantagens no diálogo interdisciplinar: temos muito a aprender com os sociólogos, com os antropólogos… Quando se lida com a saúde e com a doença das pessoas temos que saber muito mais que Medicina, ainda que os conhecimentos médicos sejam absolutamente imprescindíveis. Deste modo, a Sociologia, na questão da pobreza e das desigualdades, a Antropologia, no que tem a ver com as variações culturais de crenças, sintomas, comportamentos de procura de ajuda são acréscimos preciosos, permitindo uma visão mais global do comportamento da pessoa. A Medicina que lida com o sofrimento humano deve espreitar o que acontece à escala global.
Q: A que níveis é possível intervir socialmente? Muitas vezes, e de acordo com um ditado antigo, temos que saber o que é que podemos fazer, o que é que não podemos fazer e a diferença entre as duas coisas. Muitas vezes não podemos fazer nada, noutras podemos impedir que a situação se agrave, noutras podemos pedir ajuda a alguém que esteja no terreno e possa intervir do ponto de vista social (técnicos de serviço social, por exemplo).
Q: No seu entender, O Erro de Descartes foi a separação entre o corpo e a mente como António Damásio defende?
A grande dificuldade é fazer a ponte perfeita entre aquilo que é a emoção e aquilo que é a razão. Há uma certa tendência em separar as coisas, em dizer que uma antecede a outra. Mas a nossa vida é razão, a nossa vida é emoção e é difícil definir a natureza da interacção entre ambas.
Q: Será correcto assumir que as pessoas que não desenvolvem ou não possuem mecanismos de coping para enfrentar determinados acontecimentos de vida percepcionados como stressantes, são mais susceptíveis de desenvolver determinado tipo de patologias?
Claro que há pessoas mais e menos vulneráveis! A vulnerabilidade não se reflecte apenas nas dimensões de coping. A pessoa pode ter estratégias de coping passivas que não lhe permitem confrontar-se com os problemas. Contudo, esse é apenas um índice de vulnerabilidade, pois as estratégias de coping interessam mais como factores de manutenção. Por exemplo, as pessoas que sofrem de dor crónica podem ter uma estratégia passiva, afirmando que “mais vale morrer” ou que “não sou capaz de fazer nada” ou, pelo contrário, adoptar um mecanismo de coping activo e dizer: “é melhor sair de casa e distrair-me com qualquer coisa”. Estes mecanismos de coping diferenciados, muitas vezes respondem pela evolução, pelo prognóstico que os diversos casos têm.
Q: Recorrendo à sua experiência clínica, é verosímil afirmar que existem certas características de personalidade específicas de pacientes que sofrem de doenças classicamente consideradas psicossomáticas (por exemplo, doenças alérgicas, úlceras duodenais…)?
Traços de personalidade específicos não. Antigamente considerava-se que era assim, que havia constelações de personalidade que levavam directamente a determinado tipo de patologias. Havia uma lei de especificidade que afirmava exactamente isso: determinado tipo de conflitos levavam a determinado tipo de patologias. Actualmente, não pensamos assim, não falamos de doenças psicossomáticas. Quando olhamos para situações clínicas em que são importantes os factores de natureza psicológica, não encontramos um padrão de personalidade específica, embora possamos encontrar traços que são mais característicos de uma ou outra patologia. Por exemplo, as pessoas que sofrem de hipocondria têm por vezes traços de uma personalidade obsessiva. De igual modo, as pessoas que apresentam perturbação de somatização (evidenciam múltiplos sintomas em vários departamentos orgânicos) manifestam traços histriónicos. Fizeram-se muitos testes de personalidade com pessoas sofrendo de patologias deste tipo, usando sobretudo o MMPI-2. Os resultados mostraram que certas escalas apareciam sistematicamente elevadas em situações de dor crónica, em situações somáticas funcionais. No entanto, não há nenhuma especificidade e, portanto, não podemos dizer que existe uma constelação de personalidade específica das pessoas que desenvolvem este tipo de patologias consideradas psicossomáticas.
Q: A mesma questão levanta-se por vezes em relação à anorexia…
Sim, encontramos, por vezes, uma estrutura obsessiva nas jovens anorécticas, bem como uma certa rigidez ou inflexibilidade adaptativa e comportamentos de natureza compulsiva e ritualista. Há mesmo autores que dizem que a anorexia pertence ao espectro das perturbações obsessivo-compulsivas. A ideia que tenho é que o comportamento alimentar é das únicas, se não mesmo a única área da vida da jovem anoréctica sobre a qual ela tem algum controlo ou poder.
Q: Segundo Kennerly, o carácter mais especulativo que experimental de algumas explicações psicológicas para certas doenças, veio minar a credibilidade da Psicossomática. Neste sentido, o que é que o seguinte exemplo lhe suscita? “A respiração asmática seria como um grito de lamento pelo desejo violento e não concretizado de emancipação da criança e do adolescente. (…) Na vida adulta o quadro volta a aparecer já que o indivíduo não conseguiu romper a situação de dependência que mantinha com os pais dominadores, inseguros, ansiosos e incapazes de transmitir amor genuíno.”
Tenho muita dificuldade em entrar nesse tipo de raciocínio, não compreendo! É um discurso hermético que não é susceptível de contra-prova, é irrefutável no sentido em que não há ninguém do lado de fora que o possa contrariar. O meu discurso é paralelo a esse e, portanto, ambos não se cruzam. Não vejo as coisas nessa perspectiva. Será difícil estabelecer um diálogo construtivo entre duas perspectivas tão antagónicas. Em Medicina, acho que faz mais sentido procurarmos do lado de fora. A Psicanálise procura sistematicamente o lado de dentro, sendo esta, na minha opinião, uma visão redutora. Claro que também estou consciente dos limites e dos perigos do determinismo cultural e social. Não é tudo cultura, não é tudo sociedade, não é tudo relações entre as pessoas…mas a verdade é que muito do que tem a ver com o sofrimento humano tem a ver com o facto da pessoa ser um animal social. Uma pessoa que sofre e se queixa de solidão não é porque está sozinha, é porque há outras pessoas que não estão presentes, é porque há outras pessoas. Se sofremos com uma ruptura afectiva, com problemas no casamento ou no trabalho é porque há outras pessoas, é porque há um contexto. Prefiro compreender e ajudar as pessoas em função do que lhes acontece, daquilo que é a sua experiência, mas ao mesmo tempo, daquilo que esta reflecte. E aquilo que a experiência transparece é que é algo que se passa do lado de fora, não nas nossas vísceras, na nossa alma. Em doenças como a Fibromialgia, é importante olharmos para a pessoa numa perspectiva longitudinal. Estamos com a pessoa pela primeira vez e falamos em dor, aceitando os sintomas e o sofrimento da pessoa como real. Quando, a certa altura, alargamos a “agenda” e procuramos os antecedentes pessoais, vemos muitas vezes que estas pessoas foram abusadas na infância, tiveram experiências de perda ou privação. Estas pessoas foram vulnerabilizadas quando eram crianças. À medida que esta vulnerabilidade inicial ou distal se cruza com contextos de vida negativos, a pessoa alimenta esta vulnerabilidade. Na idade adulta, quando a pessoa se confronta com um acontecimento de vida stressante, desenvolve e mantém sintomas de sofrimento, que resultam de uma forma mais ou menos directa de uma vulnerabilidade que está lá atrás. É por isso que eu acho que a Fibromialgia, enquanto processo, é algo dinâmico, eventualmente reversível se aquilo que acontece na vida das pessoas deixa de ser mau e passa a ser bom. É possível que em determinadas circunstâncias os factores sociais, por serem positivos, revertam uma situação má do ponto de vista clínico e que a pessoa regresse a um estado de homeostase.
Q: Perturbações mediatizadas como o stress podem ser entendidas como psicossomáticas?
O stress tem carácter propulsivo e adaptativo no sentido em que nos mobiliza para a acção, desde que se encontre num intervalo óptimo. É possível que as pessoas fiquem mais atreitas até mesmo do ponto de vista biológico a algum tipo de doenças relacionadas com o stress. Sabe-se que pode haver alguma desregulação imunológica, a pessoa fica mais vulnerável. Há estudos que relatam alterações nos linfócitos T, responsáveis pelas nossas defesas, provocando uma maior susceptibilidade a infecções.
Q: Na sua perspectiva, até que ponto a relação mãe-filho ou o próprio padrão familiar podem condicionar o aparecimento e até, segundo alguns autores, a manutenção de algumas doenças psicossomáticas?
O que eu posso dizer em relação a isso tem a ver basicamente com aquilo a que nós chamamos sintomas somáticos funcionais. A hiper-protecção parental, os cuidados excessivos por parte dos pais perante o mínimo sintoma que o filho apresente podem promover o comportamento de doença anormal na idade adulta. Por exemplo, uma mãe que privilegia as queixas somáticas em detrimento das queixas emocionais promove fenómenos de somatização na idade adulta. A criança aprende que, para que lhe dêem atenção, é preciso queixar-se de um sintoma físico, de uma dor…
Q: Acaba por ser um modo de funcionamento…
Acaba, por vezes, por ser um modo de estar, sobretudo se o processo se cristaliza na idade adulta. Por outro lado, a ausência de cuidados também é um importante preditor de somatização na idade adulta.
Q: O que lhe sugere a frase Quem Ama Não Adoece?
É difícil estabelecermos uma relação de causa-efeito… Acho que compreendo o que se quer dizer nessa frase. As pessoas que não exteriorizam as emoções podem mais facilmente desenvolver patologia psicossomática. As pessoas alexitímicas que, portanto, têm uma incapacidade na expressão dos seus sentimentos, uma iliteracia emocional, utilizam uma linguagem somática para traduzir estados emocionais. Se, pelo contrário, as pessoas não se inibirem e exteriorizarem as suas emoções serão mais saudáveis e resistentes a qualquer tipo de patologia.
|