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História

Dentro dos temas do seu ensaísmo a História ocupa um lugar de relevo. Quer justificar?

Eis o que penso. Sou apenas um pedagogista, uma sorte de pregador, um filósofo, um campeador pela Cultura e pelo bem do Povo, cujo único cuidado são as «pedras vivas» que-sofrem; e, se às vezes problematizo sobre temas de História, faço-o como ensaísta - de sugestões hipotéticas acerca da maneira de interpretar o que foi. E com que escopo, em suma?

Unicamente com este:o de agir na mentalidade dos actuadores de agora; quer dizer: dos que hão-de ensinar à nossa «arraia-miúda» a maneira pacífica de se libertar a si mesma, sem cair na dependência em relação a magnatas, a politicões, a tribunos, que são simples instrumentos, mais ou menos conscientes, do bando de argentários que domina a Grei.

Para mim, é baldo todo o estudo do acontecer de outrora que não venha em função de uma necessidade actualíssima, que não seja determinado por um problema vivo; que não possa influir nas criaturas de hoje, preparando o amanhã.

Demais, nunca quis ser um historiador, e proclamei-o centenas de vezes. Que sou eu então? Um interpretador, um analista, um crítico ou filósofo da nossa história. [Como exemplos da minha interpretação dos factos): a teoria da formação do nosso país como sendo um episódio de transição da economia agrícola e local para a economia comercial na sociedade europeia; a doutrina sobre o carácter da revolução de 1383-1385 e do condicionamento das navegações; o fenómeno da luta política de Fixação com a política do Transporte, a crítica do regime socioeconómico e das suas consequências de variada espécie, e a ordenação da história de Portugal - de toda a história de Portugal -em relação a esse fenómeno socioeconómico; a caracterização do humanismo científico português da época dos descobrimentos, como constituindo o elemento básico na evolução da nossa cultura; o papel dos "estrangeirados" na tentativa de reforma do séc. XVIII, posta toda à conta do Marquês de Pombal pelos escritores que me precederam - e muitas outras ideias de menor importância. Os historiadores, portanto, dão-me os pontos das curvas; eu busco determinar-lhes as equações. Porque acima de tudo, como disse já, está a própria arquitectura dos meus livrinhos: a relacionação do facto com o facto, a ligação do princípio com o meio e com o fim - a unidade, o entendimento... com pedaços velhos, fiz um todo novo: aí precisamente é que está o jeito.

Para concluir: a mim -que não sou erudito nem pretendo sê-lo - pouco me interessaria a atitude de espírito com que um povo considera a sua própria História, se ela não influísse na atitude de espírito com que ele se orienta no seu viver presente. Mas influi. O intelecto é uno. Quem vê com «miragens» o seu passado, constrói com «miragens» o seu futuro.

Quer dizer: a História é por si encarada «hipoteticamente». Como escreveu no prefácio da Introdução à História de Portugal -«nada na experiência que não seja hipótese, nenhum dado absoluto que se nela insira; todo conhecimento é hipotético, como toda percepção é hipotética», logo também a História...

Como tenho repetido muitas vezes, nunca pretendi fazer história à maneira dos eruditos e dos especialistas, mas compreender os factos do nosso passado, o que me leva frequentemente a interpretações económicas e sociológicas. Ora, compreender é relacionar, construir uma Forma; compreender uma coisa, digo eu, é relacionar a ideia da coisa com um conjunto de ideias de outras coisas; ou, ainda: é passar da fantasia de uma inerência à concepção de um tecido de relações - relações da ideia da coisa estudada com as ideias do todo em que se ela integra.

No que toca às causas dos sucessos históricos, ao móbil dos actos, às intenções dos homens, não será a inteligibilidade que constitui a prova de qualquer hipótese que nós proponhamos, e não só o testemunho de um contemporâneo do facto? Com efeito, o autor do testemunho contemporâneo é susceptível de erro como qualquer de nós, e poderá ele próprio

Diálogo com António Sérgio
A.Campos Matos


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Última actualização: Outubro 2002