O NOVO REGIME LEGAL SOBRE A POLUIÇÃO SONORA (RGR)

UM PASSO EM FRENTE OU UMA OPORTUNIDADE PERDIDA?

A. P. Oliveira de Carvalho

Engº Civil, Ph.D., membro sénior da O.E.
Professor Associado FEUP
 
 

(in INGENIUM ed. Fevereiro 2001)


Foi publicado em Diário da República a 14 de Novembro de 2000 o texto do novo Regulamento Geral do Ruído (RGR) agora oficialmente denominado como REGIME LEGAL SOBRE A POLUIÇÃO SONORA. O regulamento ainda em vigor data de 24 de Junho de 1987 e embora aí fosse referido (artº 2º DL 251/87) que seria revisto decorrido o prazo de 3 anos contado da data da sua entrada em vigor (sic) tivemos de esperar mais de 13 anos para esta nova versão. Mas terá valido a pena a espera? Vejamos os pontos mais marcantes desse regulamento que entrará em vigor (embora parcialmente) em meados do corrente ano de 2001.
 

Os elementos positivos mais salientes do novo articulado podem sistematizar-se nos seguintes pontos:

 
Porém existem alguns pontos menos conseguidos, quer na índole da filosofia de abordagem, quer na sua própria aplicabilidade técnica.
    Um ponto negativo de carácter genérico refere-se às sanções pecuniárias previstas.
    Uma legislação tão radical como esta se afigura e tão incisiva perante algumas actividades de origem social humana tem de ter um efeito claramente dissuasor para obrigar à generalização da sua aplicação.
    Não se compreende que algumas das infracções sejam agora sancionadas com coimas de valor inferior (em termos reais ou mesmos em termos absolutos) àquelas que existiam no texto de 1987.
    Convém notar que a inflação nesse período (Jun. 1987 a Nov. 2000) foi de cerca de 140% (e por exemplo o salário mínimo de 1987 a 2000 subiu 153%).
    O Quadro nº 1 apresenta alguns casos. Aí pode verificar-se que, por exemplo, as possíveis infracções às características técnicas de isolamento sonoro de habitações viram reduzidas a sanções pecuniárias a aplicar. Porquê?
    Também não se compreende, que uma infracção cometida por exemplo por uma discoteca poluidora seja penalizada em 2001 por valores não superiores (em termos reais) aos que eram preconizados em 1987 (atendendo à inflação). E se soubermos que grande parte das coimas são aplicadas pelo seu valor mínimo, que poder de dissuasão pode ter uma sanção de 100.000$ ou mesmo 250.000$ para uma discoteca ou para uma fábrica, muitas vezes após anos de poluição sonora?

 

Quadro 1 - Comparação entre alguns dos valores de coimas previstos nas duas versões do Regulamento Geral do Ruído (RGR).

TEMA
R.G.R. (Jun. 1987)
R.G.R. (Nov. 2000)
Edifícios (características técnicas: isolamentos, etc.)
1.500 c. a 6.000 c.
100 c. a 5.000 c.
Implantação de edifícios (habitações, escolas, hospitais) em zona ilegal
1.500 c. a 6.000 c.
250 c. a 9.000 c.
Incomodidade sonora (para o exterior ou terceiros)
50 c. a 1.000 c.
100 c. a 5.000 c.

 

Este novo RGR orienta muita da sua filosofia base de aplicação para uma intervenção forte e participativa dos órgãos autárquicos concelhios. Nomeadamente remete para as câmaras municipais, por exemplo (listagem não exaustiva):

E tal como em grande parte da legislação entre nós, existe sempre uma porta aberta para não serem tomadas as medidas exigidas, pela figura do deferimento tácito. No artigo 5º pt. 6 é referido que a ausência de parecer no prazo de 20 dias entende-se como parecer favorável. Qualquer câmara municipal pode assim não exigir o exigível. É o governo central a claramente autorizar a desresponsabilização dos órgãos do Estado de nível concelhio. Faz-se a lei (adequada e correcta) mas logo no mesmo instante se indica a forma de a não aplicar (e sem ser sancionado por isso).
Notar que pelo articulado da legislação o projecto acústico pode ser apresentado como um Certificado de Conformidade Acústica (de empresa acreditada na área do ambiente). Não se refere contudo que tipo de documento é esse nem que tipo de responsabilidade civil ou outra, é transferida para essa entidade pelo eventual não cumprimento técnico do documento.

 

Se, em abstracto, tal aumento de responsabilidade para as câmaras municipais poderia ser positivo, surgem porém na concretização prática, muitas dúvidas à eficácia desses novos requisitos.

Será que as câmaras municipais estão minimamente preparadas para essas novas tarefas? Terão elas os meios materiais, humanos e financeiros para este acréscimo de trabalho de carácter técnico específico muito vincado? Parece evidente que não e a própria Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) já foi porta-voz deste facto. Talvez à excepção de um reduzido grupo de câmaras municipais, a grande maioria das 308 câmaras irá certamente ignorar este regulamento (como ignorou o anterior RGR) e usar, pelo menos por agora, a eficaz e legal figura do deferimento tácito.
 

E em termo de custos? Por elementos divulgados pela União Europeia prevê-se que o custo só do mapeamento do ruído possa atingir até cerca de 400$/habitante. Os planos de acção/redução de ruído poderão custar um valor idêntico. As acções colaterais de fiscalização/divulgação/etc. poderão ainda acrescer em idêntico valor. Teríamos assim um custo de até 1.200$/habitante o que daria um custo global de até 12 milhões de contos para todo o País. E não contabilizamos ainda os custos correntes anuais de gestão e aplicação de todo este novo processo, directa ou indirectamente envolvido com as novas responsabilidades camarárias nesta área que poderão ser da ordem dos 3-5 milhões de contos/ano.

E em que intervalo de tempo? O RGR não define claramente um limite temporal para essas tarefas mais básicas. Pode talvez assumir-se que seja para entrar em vigor com o início da validade do diploma (meados de 2001). Contudo a própria União Europeia preconiza na proposta de Directiva (já em fase final de aprovação) [1]  um prazo até 2005 para o mapeamento do ruído de grandes aglomerados populacionais (superior a 250.000 habitantes) e até 2010 para os aglomerados menores e até 100.000 habitantes. Os planos de acção serão devidos até 1 ano após os prazos acima referidos. O novo RGR é omisso em relação a datas e prazos neste aspecto particular.
 

Outro ponto de análise não totalmente feliz é o respeitante ao ruído provocado por tráfego aéreo (artº 17º novo RGR). Aí se estabelece que ficarão proibidas (embora só a partir de Maio de 2002) as aterragens ou descolagens entre as 0 e as 6 h. Este seria um facto muito positivo não fora a existência de excepções, tais como:

- se os aviões não forem civis
    [mesmo em qualquer circunstância? Porquê?];
- se houver um sistema de monitorização de ruído
[será que basta comprar um sonómetro e fazer umas medições para se poder provocar ruído? As populações serão menos susceptíveis ao incómodo sonoro se souberem que o aeroporto tem um sonómetro no terraço?];
- se por motivo de força maior
[esta frase é muito abrangente e permite autorizar tudo - será isso que se pretende? O lógico e razoável seria usar uma terminologia do tipo "por motivos de emergência"].
 
Como já outros referiram, é sempre por via das excepções nos textos legislativos que, entre nós se dissimulam as cedências...

 

O novo RGR enferma também de uma incoerência. Esse texto revoga todo o articulado do anterior RGR excepto os seus artigos 6º a 9º. Ora, talvez por lapso, esqueceu-se o legislador que ao revogar o artigo 4º do antigo RGR (classificação de locais) impede a utilização do seu artigo 6º pt. 1 (limite do R45 em habitações em função da classificação dos locais) que se mantém em vigor.
 
 

Segundo o novo RGR (artº 5º pt.s 7 e 11 e artº 20º pt. 4) a realização de ensaios, inspecções, o apoio técnico ou mesmo a emissão de certificados de conformidade acústica pode ser feito por entidade acreditada para a área do ambiente e que exerça a sua actividade no domínio do ruído (sic). Isto quer simplesmente dizer que uma empresa acreditada para ensaios ao ar, à água ou com qualquer outra actividade remotamente ligada ao ambiente pode intervir sobre o ruído.

Utilizando uma simbologia comparativa, seria o mesmo que preconizar que as análises clínicas para despistagem de doenças infecto-contagiosas poderiam ser efectuadas por "qualquer entidade ligada à saúde" (isto é, desde postos de enfermagem, farmácias, ervanárias, empresas de aluguer de ambulâncias, etc.).
Parece de elementar justiça que para credibilizar a administração pública esta só aceite relatórios e intervenções na área do ruído de entidades acreditadas para ensaios especificamente nesta área e não de colaterais. Actualmente existem já em Portugal 13 entidades acreditadas para ensaios na área do ruído e, com essa obrigatoriedade expressa na legislação, outras mais rapidamente surgiriam a requerer essa inevitável e necessária acreditação.

 

Um dos pontos mais utilizados do anterior RGR refere-se ao expresso nos artºs 14º/20º que limitava a 10 dB(A) o acréscimo de ruído que qualquer actividade poderia provocar para o seu exterior. Isto é, o "lixo sonoro" como subproduto de uma actividade não podia exceder os 10 dB(A). Isso era determinado através da análise da diferença entre o LAeq (nível sonoro contínuo equivalente) do ruído particular corrigido e o LA95 (nível sonoro excedido em 95% do tempo de medição) do ruído de fundo. Esse limite era de facto um valor excessivo e só era compreensível como tendo sido uma primeira abordagem à situação que vigoraria unicamente por 3 anos. A lei tinha pois um carácter muito permissivo que importava rapidamente alterar. Tal foi feito baixando esse valor de 10 dB(A) para 3 ou 5 dB(A) em função do período do dia (embora podendo atingir os 9 dBA em casos particulares em função do tempo de emergência do ruído).

    Convém esclarecer que os valores limites do anterior RGR e do novo RGR não são imediatamente comparáveis pois os parâmetros de análise são ligeiramente diferentes. Agora passa-se a usar o LAeq em vez do LA95 do ruído de fundo.
    Se uma redução desse valor de 10 dB(A) era desejável, ser-se tão "ecologicamente radical" é contraproducente. Exigir-se um máximo de 3 dB(A) para situações de ruído nocturno é tornar imediatamente ilegal a quase totalidade das situações de actual contiguidade nefasta, tornando assim ineficaz a existência de legislação.
    Se actualmente mesmo o limite permissivo dos 10 dB(A) não era de fácil e eficaz aplicação não é credível admitir como possível a institucionalização rápida desse abaixamento radical, para os 3 dB(A). Dever-se-ia talvez reduzir inicialmente durante 4 ou 5 anos para, por exemplo, 6 dB(A) e depois, mais tarde, para 4 dB(A) por mais igual período, se as condições sociais o justificassem, e só então atingir-se o rigor dos 3 dB(A).
 
Uma questão técnica relevante neste aspecto prende-se com a alteração do parâmetro de análise do ruído de fundo do estatístico LA95 para o energético LAeq. Se a mudança parece tecnicamente correcta pois permite comparar grandezas idênticas embora em situações ambientais distintas, em termos práticos a situação altera-se.
    A determinação prática in situ do LA95 (ruído de fundo) é relativamente fácil e rápida pois existe uma convergência habitualmente muito célere dos valores rastreados. Com o uso do parâmetro LAeq tal situação altera-se quase por completo.
    A determinação do LAeq por exemplo durante 2 horas (e já é um período de análise muito alargado e hoje pouco corrente em foro de acções de fiscalização) das 22 h às 24 h daria, na maioria das situações, um valor numérico muito distinto do que se medido, por exemplo, das 3 às 5 horas da noite. Por isso, qualquer resultado dessas medições irá depender fortemente da escolha do intervalo de medição e da sua duração e será assim facilmente contestável por uma das partes envolvidas no conflito. O rigor de análise e a credibilidade exigível aos resultados passará então a impor quase obrigatoriamente medições em intervalos de tempo muito alargados (em muitos casos até 4 ou mais horas) o que tornará impraticável a grande maioria das situações de fiscalização. Será então relativamente fácil contestar a validade de quase qualquer acção ou coima baseada na determinação desse parâmetro.
 

Outro ponto menos conseguido centra-se na ausência de alterações do RGR para as características técnicas dos edifícios pois os artigos 6º a 9º do antigo RGR mantêm-se em vigor. E são esses os únicos que definem os valores limite relativos ao isolamento sonoro e outras características da envolvente de edifícios de habitação, escolas e hospitais.

    Será que faltou a coragem ou vontade para actuar neste aspecto que é aquele que directamente interfere com a qualidade ambiental dos edifícios mais importantes para todos nós? Continua assim hoje a exigir-se o mesmo que há 14 anos atrás.
Convém referir que a prática corrente na aplicação esses artigos 6º a 9º (anterior RGR) era infelizmente quase nula. Pura e simplesmente a quase totalidade das câmaras municipais não exigia nenhum projecto acústico no licenciamento. Por exemplo, as escolas construídas pelo Estado continuam quase a ignorar o RGR.
O RGR nos seus artigos 6º a 9º era , todos o sabemos, quase letra morta. Talvez por isso o legislador decidiu não lhe mexer. Talvez sem coragem para mudar pois parece nunca ter tido vontade para a fazer aplicar.
Temos assim hoje alunos a estudar em salas de aula que prejudicam gravemente a aprendizagem por apresentarem tempos de reverberação elevadíssimos ou fracos isolamentos sonoros face ao exterior ou reduzidos isolamentos sonoros entre salas, etc.

 

Nesta área dos Edifícios, este novo RGR deveria ter, pelo menos, corrigido as denominações dos parâmetros que, por força da normalização europeia, foram instituídas nesta área específica. Continuamos a ter na lei por exemplo os Ia e os Ip quando na actualidade devíamos já utilizar outras denominações (neste caso, Dn,w e L'n,w). Porém, não podemos pois um decreto-lei tem mais força legal do que documentos normativos (mesmo se europeus). E este assunto não é tão insignificante como poderia parecer pois as normas das metodologias de determinação e cálculo desses parâmetros (as NP 669 e NP 2073) foram também alteradas por publicações de normas europeias (com base nas ISO 140 e ISO 717) que se sobrepõem às portuguesas por força dos acordos de adesão à União Europeia.  O uso dessas novas normas (que revogaram as anteriores NP's), devido às pequenas alterações que apresentam, podem nalgumas situações conduzir a resultados um pouco diferentes, o que se poderia e deveria ter tido o cuidado de acautelar.
 

Um outro ponto de carácter técnico que se encontra incorrecto no articulado do novo RGR refere-se à caracterização do ruído tonal (novo RGR Anexo I - pt 1). Aí é referido que o método para detectar as características tonais do ruído consiste em verificar, no espectro de um terço de oitava, se o nível de uma banda excede o das adjacentes em 5 dB ou mais (sic). Esquece-se porém o legislador de limitar em frequência essa análise. Essa falha é bastante grave pois permite considerar ou não como tonal um ruído e assim aplicar-lhe uma elevadíssima penalização que pode, só por si, tornar ilegal a situação. Por exemplo, poderá ser considerado tonal um ruído com uma componente na banda dos 50 Hz, 5 dB superior às suas bandas adjacentes dos 40 e 63 Hz? Embora subjectivamente e cientificamente esse ruído não seja tonal, o articulado do texto do RGR fá-lo considerar como tal.  É cientificamente reconhecido que o diferencial de 5 dB em bandas adjacentes como limite mínimo para a constatação da "tonalidade" de um ruído só é tecnicamente aceitável se se referir a bandas de frequência superior ou igual a 400 Hz.  Para bandas de frequência inferiores e até cerca dos 160 Hz esse diferencial para atribuição da tonalidade deverá aumentar para cerca de 8 a 10 dB. Para bandas de frequência ainda mais baixas a "tonalidade" de um ruído só poderá ser atribuída para diferenciais das bandas adjacentes superiores de 10 a 15 dB (ver por exemplo [2, 3]).
 
 

Outro ponto incompreensível é que este novo RGR parece esquecer completamente o trabalho da União Europeia nesta área que tem já preparada e aprovada uma proposta de Directiva Comunitária [1] sobre este assunto. O novo RGR não utiliza esse documento pois infringe alguns dos seus pontos mais básicos como, por exemplo :

- Usa 2 períodos de referência quando a proposta de directiva preconiza o uso de 3;
- Usa o parâmetro LAeq quando essa proposta de directiva se refere unicamente aos LDEN e LNight.
- Não se articula com os largos prazos de implementação previstos (com acções até ao ano de 2011).
Este novo RGR apresenta alta exigência de conforto ambiental o que é de louvar. Contudo, afigura-se de aplicação muito difícil ou problemática e de fraco ou nenhum poder de dissuasão. Qualquer legislação só pode ser considerada adequada se for útil, eficaz, exequível e tiver suficiente poder de dissuasão face a possíveis incumprimentos. Esta lei não consegue pois atingir os objectivos sociais e técnicos a que se propõe. Mais parece ser uma legislação que se destina não a ser efectivamente aplicada entre nós mas tão somente para exteriorizar que Portugal está muito avançado no combate ao ruído.
Com o estilo e prática da grande maioria dos intervenientes neste domínio, o novo RGR será amplamente ignorado por impraticável. Já vários organismos compreenderam isso e publicamente o afirmaram como a ANMP e a QUERCUS.

 

"Ao legislador exibicionista pouco lhe interessa saber se as leis que aprova são exequíveis e têm os meios de ser postas em prática"

(António Barreto in Público 24.09.2000).

 


[1] Proposal for a Directive of the European Parliament and of the Council relating to the assessment and management of environmental noise, Brussels COM(2000)468 - 26/07/2000;
[2] Environmental Noise Measurement, Brüel & Kjaer, BR 0139-12, Lyngby (Dinamarca);
[3] NF S 31-010, Acoustique, caractérisation et mesurage des bruits de l'environment, Paris, Dez. 1996.