Óleos Usados

 

Perante uma situação ambiental francamente má, num país onde todos os recantos verdes junto de povoações servem de lixeiras, onde os cursos de água e o mar recebem directamente as mais variadas descargas de poluentes, seria de esperar que houvesse uma permanente pressão sobre o governo para acelerar o processo de recuperação ambiental. Infelizmente a maioria das acções são reactivas, isto é surgem como se as calamidades que por aí encontramos fossem o mal menor, e as medidas para as eliminar, essas sim, constituíssem um perigo para o Ambiente. Tal como no tempo da Revolta da Patuleia, em que a proibição do enterramento nas igrejas foi motivo de levantamento popular, usa-se agora o medo do desconhecido para incentivar campanhas de contestação a tudo o que tem representado um avanço em termos ambientais.

Talvez na linha desta cultura, o Grupo Parlamentar do PSD apresentou recentemente na AR um projecto de lei sobre o tratamento de óleos usados que declaradamente pretende ser uma entrave ao processo de tratamento dos resíduos industriais perigosos, nomeadamente por co-incineração em cimenteiras. Esse diploma começava por propor algumas medidas louváveis como o lançamento de uma eco-taxa sobre os óleos novos – a maneira de se poder pagar o custo da sua recolha e tratamento depois de usados – e propõe ainda uma medida importante: todos os locais de venda serem obrigatoriamente locais de recepção dos óleos usados (poderiam ter ido mais longe se obrigassem a que o total máximo de óleo novo vendido em cada local fosse indexado ao óleo usado recolhido, entregue a uma empresa de tratamento).

Logo a seguir o projecto de diploma pretendia proibir a venda de solventes e óleos usados recolhidos; criar um Sistema Nacional de Reciclagem de Óleos Usados e Solventes que ficaria com o monopólio do tratamento destes produtos, que depois seriam atribuídos em regime de exclusivo; decide que será instituída a gratuitidade da recolha dos óleos usados (art.º 2 §k); finalmente, e o que é ainda mais grave, decreta (art.º 5), que "fica proibida a valorização energética de óleos usados e solventes em todo o território nacional", fundamentalismo que se reconhece susceptível de correcção, conforme declarou na apresentação do diploma o sr. deputado José Eduardo Martins. Este diploma, que obviamente tem como objectivo central pôr em causa o processo de co-incineração, foi rejeitado pela AR. A Quercus, que apoiava o diploma, veio lançar um ultimato, ameaçando que se o diploma não fosse substituído por uma nova iniciativa, agora do PS, sem os erros da anterior, então passaria a opor-se à co-incineração, demonstrando bem o objectivo de toda a manobra.

Mas qual é afinal a situação actual no que diz respeito aos óleos usados? Várias empresas estabeleceram um sistema de recolha porta a porta, pagando às garagens e estações de serviço pelo óleo usado. Esse óleo é sujeito a uma operação de tratamento em que lhe é retirada a água, as partículas sólidas, incluindo metais residuais, sendo depois vendido para alimentar caldeiras e equipamentos similares, em substituição do fuel-oil. Parte dos óleos circula ainda clandestinamente e é queimado sem tratamento, o que constitui um atentado à saúde pública.

Do ponto de vista de poupança de recursos não renováveis a combustão de óleo tratado vai permitir substituir uma quantidade equivalente de fuel. Assim, o crude que importamos ou vai servir para fabricar óleo base, ou vai ser usado para produzir o fuel que passará a ser necessário se o óleo usado não puder ser consumido como combustível. Em termos de importação de crude, quer haja regeneração de óleos quer não, o petróleo bruto total consumido é rigorosamente o mesmo.

Em termos ambientais a combustão de óleo tratado em equipamentos industriais pode ser feita de forma ambientalmente segura.

Por maioria de razão, a queima em cimenteiras mesmo de óleo não tratado é ainda ambientalmente mais segura, permitindo fixar o enxofre que vai originar a formação de gesso e os metais pesados que ficam na estrutura do clinker. A co-incineração de óleos é um processo de recuperação de todo o valor energético destes resíduos, garantindo emissões gasosas perfeitamente similares às resultantes dos combustíveis normais (carvão e pet-coque).

Os estudos de ciclos de vida que abordam de forma global as duas alternativas (queima ou regeneração), medindo os respectivos efeitos no Ambiente, apresentam resultados contraditórios porque são dependentes das condições específicas de cada país, o que num caso origina considerarem que a valorização energética é mais favorável ao Ambiente e noutros casos o contrário. Este facto evidencia que não haverá, do ponto de vista Ambiental, diferenças muito significativas entre as duas alternativas.

A regeneração não permite separar produtos aromáticos, pesticidas, óleos de travões, certos lubrificantes da caixa de velocidades e outros contaminantes que podem aparecer juntamente com os óleos usados. Assim há sempre uma fracção de óleo que não pode ser regenerado, o que origina a que o rendimento da regeneração não ultrapasse geralmente os 70%, sendo a valorização energética da fracção restante uma das vias mais frequentes de destino final (que na redacção original da proposta seria também proibida, inviabilizando assim a própria regeneração).

Um facto não tem sido contemplado nos estudos de ciclo de vida: a tendência para a utilização crescente de óleos sintéticos na lubrificação de motores de combustão. Estes óleos são muito mais estáveis termicamente, reduzem o desgaste e podem ser mudados com menos frequência que os óleos minerais (duram três a quatro vezes mais que os óleos tradicionais), e permitem economizar combustível (até 5%). Ora um óleo, mesmo de duração normal, representa apenas cerca de 1% do combustível gasto por um motor a quatro tempos durante o tempo de vida do óleo. Mesmo que a poupança de combustível fosse só de 2%, o uso crescente de óleos sintéticos vai alterar significativamente a situação: cada litro de óleo sintético que vier a ser substituído por óleo regenerado traduz-se numa perda efectiva de mais de 6 litros de combustível.

A actividade de regeneração de óleos não tem sido economicamente atractiva ao longo do tempos, sobrevivendo por vezes na base dum sistema de subsídios; com o uso emergente de óleos sintéticos de longa duração, a situação económica da regeneração só será viável com o apoio do Estado, e contraria um principio básico da regra dos 3Rs: o óleo sintético reduz efectivamente a produção dum resíduo perigoso enquanto que a regeneração significa a continuação do uso de óleos tradicionais.

Finalmente a proposta semelhante à do PSD teria um efeito perverso muito perigoso para o Ambiente: enquanto o óleo usado ainda tem valor, sendo vendido pelo utilizador às empresas de recolha, se o projecto de lei fosse aprovado as garagens não receberiam nada pelo trabalho de recolha e armazenamento do óleo, ou pior, se viesse a suceder como já acontece na Catalunha, se o óleo estivesse contaminado (com água, gasolina ....), o garagista teria de pagar pelo seu tratamento, o que incentivaria a fuga ao sistema proposto, previsivelmente agravando a actual situação de óleos não tratados a serem queimados sem controlo.

O PSD propôs assim um projecto que criaria um novo monstro (uma entidade com o monopólio do tratamento), subsidio-dependente, substituindo empresas já instaladas e rentáveis que conseguem receber cerca de 50% dos óleos usados. O novo sistema, caro e pesado, rapidamente obsoleto face á tendência de alteração do mercado de óleos, teria com toda a probabilidade um efeito imediato: a descarga nos esgotos de muitos destes efluentes perigosos, reduzindo a taxa de recolha, tudo isto em nome de nobres objectivos ambientais, que afinal não suportam uma discussão objectiva.

A posição assumida pela Comissão Científica Independente no seu relatório parece muito mais razoável, ao defender a partilha do mercado pelas diferentes alternativas possíveis: regeneração, tratamento para valorização energética e co-incineração das fracções mais contaminadas, em lugar dum monopólio sustentado burocraticamente.

Quem lucrará se um projecto de lei deste tipo fosse aprovado? O Ambiente com certeza que não.