O que fazer com solventes contaminados? Reciclagem ou co-incineração em cimenteiras?

 

 

Reciclagem e Termodinâmica

A política dos 3 R: Redução, Reutilização e Reciclagem tem por objectivo reduzir o impacto ambiental negativo das actividades humanas, já que normalmente a sua aplicação implica a poupança de recursos não-renovaveis e uma mais baixa emissão de poluentes para o solo, águas e atmosfera. Devido a estes factores a hierarquia dos 3 R é recomendada e mesmo imposta pelas diversas Agências e Autoridades Nacionais e Europeias. Seguindo o mesmo princípio a Comissão Científica Independente (CCI) no seu primeiro relatório defende a aplicação do princípio dos 3 R, nas soluções a aplicar aos Resíduos Industriais Perigosos (RIP) em Portugal, embora considere muito mais vantajosas sobre o ponto de vista ambiental a Redução e a Reutilização, do que a Reciclagem, porque o valor recuperado na Reciclagem é usualmente muito inferior ao conseguido pela Reutilização, ou pela Redução.

Assim a CCI, recomenda a Reciclagem dos Resíduos Industriais Perigosos como regra geral, seguindo as orientações da Comissão Europeia. É preciso ter em atenção, no entanto, que a Reciclagem não é uma panaceia universal para a solução de todos os RIP. A sua implementação depende da existência de tecnologias apropriadas, da quantidade de resíduos a tratar e do nível de contaminação destes. A existência de tecnologias apropriadas é uma limitação unicamente temporal, que pode ser ultrapassada no tempo, à medida que novos processos tecnológicos são desenvolvidos. As limitações de quantidade e, principalmente, do grau de contaminação podem ter um carácter mais definitivo. A contaminação do resíduo com materiais indesejáveis implica um aumento de entropia. A reciclagem procura remover os contaminantes, (e por conseguinte uma diminuição de entropia), de modo a obter novamente um produto puro, ou mais puro, que tenha valor comercial. Pelas leis da Física, (Segundo Princípio da Termodinâmica) esta diminuição de entropia só pode ser conseguida com a adição de energia, cujo valor mínimo é tanto maior quanto mais elevado for o grau de contaminação do resíduo. Assim o impacto ambiental da Reciclagem para certo tipo de resíduos, principalmente os mais contaminados, pode ser mais negativo, quer pelo consumo de recursos energéticos não-renovaveis, quer pelo volume de poluentes lançados no ambiente, do que outros processos de tratamento de fim de linha. Uma das ilações a tirar desta avaliação é a de que deve ser evitada a todo o custo a contaminação desnecessária dos RIP, por mistura, por exemplo, com RIP de outras origens, quando se pretende fazer a sua reciclagem com êxito e com um impacto ambiental favorável.

 

Reciclagem e Análise de Ciclo de Vida

A avaliação completa do impacto ambiental de um processo de Reciclagem, ou de tratamento de RIP, só se pode fazer recorrendo a Análises de Ciclo de Vida (ACV) onde são contemplados todos os efeitos negativos ou positivos associados com o processo de tratamento, quer a jusante nos efluentes, quer a montante na extracção, transporte e tratamento das matérias primas e combustíveis utilizados. As ACV não são uma ferramenta completamente isenta de erros, existindo ainda dúvidas na sua aplicação, principalmente em relação ao grau de valorização dos diferentes impactos nos vários reservatórios ambientais. No entanto, apesar das suas limitações, esta metodologia é a única que permite avaliar a totalidade dos impactos ambientais de qualquer solução para os RIP, sendo absolutamente indispensável para a tomada de decisões ambientalmente correctas. Devido às limitações de exactidão das ACV estas devem ser utilizadas, não para escolher inequivocamente a melhor alternativa, mas para eliminar os processos de tratamento claramente mais desvantajosos do ponto de vista do impacto ambiental (Tukker, 1999).

A CCI na preparação do seu relatório procurou informar-se dos diversos estudos de ACV para tratamento de RIP concluídos nos vários países desenvolvidos. O acesso a estudos de ACV nem sempre é fácil porque estes fazem muitas vezes parte de relatórios não publicados na imprensa científica. Os vários estudos consultados permitiram concluir com segurança que a co-incineração em cimenteiras tem um impacto ambiental mais favorável do que a queima em incineradoras dedicadas, para a maioria dos tipos de RIP.

Durante a preparação do relatório a CCI teve acesso a um estudo encomendado pela Agência Governamental do Ambiente Francesa ADEME (ADEME, 1998) para a resolução do problema dos óleos residuais lubrificantes (óleos usados dos veículos automóveis, etc.) o qual mostrou de uma forma, também bastante evidente, que a co-incineração em cimenteiras é mais vantajosa do ponto de vista ambiental que a incineração dedicada e a reciclagem, para este tipo de resíduos. Em resultado deste estudo a CCI recomendou a utilização compartilhada dos óleos usados na queima em cimenteiras e na reciclagem (regeneração) de óleos lubrificantes, aconselhando a instalação em Portugal de unidades de reciclagem que possuam uma boa performance de impacto ambiental (Cap 7.8; Formosinho et al., 2000).

O acesso, posterior à conclusão do relatório da CCI, a outros três estudos de LCA para o tratamento de óleos usados (Vold et al., 1995; Jepsen e Ahrens, 1997; Federal Environmental Agency, 2000) não revelou uma evidência tão clara das vantagens da co-incineração em relação à reciclagem (ver http://www.quercus.pt/cir/index.htm) mas permitiu confirmar que estas metodologias têm vantagens e desvantagens relativas recíprocas, sendo ambientalmente mais correctas do que outros métodos de tratamento alternativos, como a incineração dedicada. Tendo em atenção o papel que deve ser dado aos estudos de ACV, que é o da eliminação de métodos de tratamento menos amigos do ambiente, estes estudos confirmam a correcção da opção da CCI por uma utilização compartilhada e concorrencial do tratamento de óleos usados por métodos de regeneração e de co-incineração.

 

Recuperação/Valorização Energética de Solventes

Durante a preparação do seu relatório a CCI não teve possibilidades de consulta a qualquer estudo de ACV para o tratamento de solventes contaminados. Deste modo, utilizando a hierarquia de princípios de tratamento e, sabendo da exequibilidade da regeneração dos solventes, aplicada já actualmente em unidades industriais em Portugal, foi recomendado pela CCI (Cap. 7.8; Formosinho et al., 2000) que os solventes só pudessem ser utilizados na co-incineração quando a sua reciclagem estivesse impossibilitada tecnicamente por excessiva contaminação (e que inclui os solventes residuais do próprio processo de reciclagem).

Recentemente tivemos conhecimento da existência de um estudo de ACV para os solventes, encomendado pela Agência do Ambiente do Reino Unido que pudemos consultar (Environment Agency, 1999). Este estudo procura comparar a queima de solventes contaminados em cimenteiras com a sua destruição por incineração dedicada e com a reciclagem/regeneração por destilação. Aqui fazemos um parêntese: Se o tratamento de destilação for aplicado a um único tipo de solvente contaminado o termo regeneração será o mais adequado. A destilação de misturas de solventes não permite geralmente (com custos aceitáveis) separar os seus constituintes individuais, gerando um solvente generalista, devendo o processo ser considerado como de reciclagem. Usaremos assim o termo reciclagem para descrever em sentido lato a recuperação de solventes. O estudo é aplicado a cinco tipos de solventes que incluem solventes generalistas, solventes específicos (tolueno contaminado, por exemplo), solventes oxigenados, solventes halogenados, solventes oleosos e águas contaminadas com solventes. A reciclagem do solvente contempla duas situações: uma mais comum envolvendo uma recuperação de até 60%, com produção de um solvente residual que tem que ser destruído termicamente, e uma outra mais extensa, com recuperação de 80% do solvente, que produz um resíduo sólido pastoso que pode ser disposto em aterro.

O estudo contempla uma Análise de Ciclo de Vida comparativa para cada tipo de solvente e uma Análise Económica avaliativa dos custos de tratamento alternativos, tendo em atenção os preços de mercado dos solventes.

Em acordo com estudos de ACV efectuados para outros RIP, a incineração dedicada é a alternativa de tratamento que apresenta sistematicamente impactos ambientais menos positivos para os diversos tipos de solventes. A única possível excepção refere-se às águas contaminadas em que a reciclagem não parece ser economicamente viável. A reciclagem mais extensa dos solventes deixando um resíduo seco é preferível ambientalmente à reciclagem a 60% com a incineração do solvente residual.

Figura 1- Impactos Ambientais para a reciclagem e co-incineração de um solvente tipo hidrocarboneto (tolueno), apresentados como uma percentagem do impacto negativo da incineração dedicada (adaptado de Environment Agency, 1999). Quanto menor for a percentagem mais amigo do ambiente é o método

A reciclagem não é necessariamente preferível ao tratamento por co-incineração. Isto depende do tipo de solvente. A comparação entre reciclagem e co-incineração mostra vantagens antagónicas em diversas áreas. Quando o solvente tem um conteúdo energético elevado e há um impacto ambiental baixo na sua manufactura a co-incineração é consistentemente preferível, sob o ponto de vista ambiental, à reciclagem. Isto deve-se ao facto de a co-incineração substituir completamente combustível normal na cimenteira. Tolueno contaminado é o exemplo para esta categoria de solventes (ver Figura 1). Para outros tipos de solventes, como a acetona, (ver Figura 2), a co-incineração é mais benéfica do que a reciclagem na emissão de NOx e SO2, mas não é tão vantajosa noutros aspectos de impacto ambiental.

Figura 2- Impactos Ambientais para a reciclagem e co-incineração de um solvente oxigenado, apresentados como uma percentagem do impacto negativo da incineração dedicada (adaptado de Environment Agency, 1999). Quanto menor for a percentagem mais amigo do ambiente é o método

Dois dos aspectos em que a co-incineração se comporta de um modo menos perfeito dizem respeito às emissões de ácido clorídrico e de metais voláteis como o mercúrio, tálio, etc. Solventes halogenados contendo altos níveis de cloro e/ou mercúrio, são possivelmente melhor destruídos termicamente em incineradoras especializadas que têm métodos sofisticados e dedicados de remoção do ácido clorídrico e do mercúrio.

 

Análise Económica

Aos preços de mercado para os solventes e tendo em atenção os custos de destruição térmica, observa-se de uma forma consistente vantagens económicas substanciais no processo de reciclagem. Os custos alternativos dos diversos processos de tratamento estão associados ao conteúdo energético dos resíduos e ao valor do tipo de solvente recuperado. Usualmente solventes específicos apresentam, quando regenerados, valores comerciais mais elevados do que solventes generalistas. O custo de reciclagem tem valores típicos de 38 libras esterlinas por tonelada de resíduo tratado, enquanto a destruição térmica tem preços típicos que variam entre as 75 libras esterlinas por tonelada, para a co-incineração, e as 125 libras esterlinas por tonelada para a incineração dedicada. No caso do solvente residual da reciclagem ter de ser enviado para destruição térmica por incineração dedicada perde-se uma parte substancial da vantagem económica da reciclagem, subindo os custos para valores típicos de 69 £/ton.

 

Que Conclusões?

Pode-se concluir deste estudo da Agência do Ambiente do Reino Unido que, se se deixar funcionar as leis do mercado concorrencial, as vantagens económicas competitivas irão promover a via da reciclagem para a maioria dos solventes contaminados, por comparação com métodos alternativos de destruição térmica. Tendo em atenção este facto e as informações de ACV que não mostram uma vantagem ambiental significativa da reciclagem, havendo mesmo indicações de que a co-incineração é consistentemente mais amiga do ambiente para o tratamento de vários tipos de solventes contaminados, é lícito pôr a questão sobre a necessidade e a bondade da imposição da via de reciclagem para este tipo de resíduos industriais perigosos!

Casimiro Pio - CCI

 

Referências:

ADEME (1998) Étude des Filières de Recyclage et de Valorisation Énergique des Huiles Usagées. Rapport de Synthèse. (Ecobilan- Maio 1998) ; Révue Critique (Bio Intelligence Service- Abril 1999).

Environment Agency (1999) Substitute Liquid Fuels (SLF) Used in Cement Kilns- Life Cycle Analysis. Technical Report P274. Reino Unido.

D. Jepsen e A. Ahrens (1997) Waste Oils. Okopol GmbH. Lower Saxony Minister of Environment. Alemanha.

Federal Environment Agency (2000) Environmental Accounting of Used Oil Recycling Processes. An Analysis by Federal Environment Agency. Berlim, Alemanha.

Formosinho S., Pio C., Barros H. e Cavalheiro J. (2000) Parecer Relativo ao Tratamento de Resíduos Industriais Perigosos. Principia, Estoril.

Tukker A. (1999) Life Cycle Assessment for waste. Part I: Overview methodology and scoping processes: Strategic EIA (Environmental Impact assessment for the Dutch National Hazardous Waste Management Plan 1997-2007. Int. Journal LCA, 4, 275.

M. Vold, H. Moller e J. Moller (1995) Burning or Re-refining Used Lube Oil? Life Cycle Assessments of the Environmental Impacts. November 1995, Oestfold Research Foundation. Agência do Ambiente da Noruega.