Está na página pessoal de

Cristina Pereira

Última actualização: 2002/04/12

 
 

segunda PARTE

Existencialismo

e

Declaração Universal dos Direitos do Homem

«O homem é,

não apenas como ele se concebe,

mas como ele quer que seja,

como ele se concebe depois da existência,

como ele se deseja após este impulso para a existência;

o homem não é mais do que ele faz.»

Jean-Paul Sartre

CAPÍTULO UM
DA FENOMENOLOGIA AO EXISTENCIALISMO

Antes de entrar directamente no problema verdadeiramente humanista da filosofia existencialista de Sartre, pareceu-me necessário tecer algumas considerações preliminares, que tornarão mais explícito o seu pensamento. Para tal, partirei da sua obra filosófica fundamental,o seu ensaio de ontologia fenomenológica - O Ser e o Nada . 

Sartre parte da fenomenologia husserliana, mas sofre ainda influência de Heidegger, e do racionalismo cartesiano. O " cogito " cartesiano que já tinha obtido um papel fundamental no desenvolvimento da Fenomenologia de Husserl vai ser também o elemento para onde tudo converge na Filosofia sartriana. 

Considera aniquilado o dualismo fenómeno - númeno. Fenómeno é o que aparece, e isto é "tudo", não há uma essência "interior" há aparência, o que é, mostra-se na aparência, o ser aparência é o seu verdadeiro ser; "Porque o ser de um existente é exactamente o que o existente aparenta" [1] . Como afirma Sartre, não faz sentido falar também de dualismo acto e potência, "tudo está em acto" [1] .

Mas surge uma nova questão; será que esta superação corresponde à supressão de todos os dualismos? Parece que não; Sartre aponta ainda para um dualismo, o de finito e infinito, "O existente, com efeito, não pode se reduzir a uma série finita de manifestações, porque cada uma delas é uma relação com um sujeito em perpétua mudança" [1] , consequentemente o existente está sujeito à série infinita das suas manifestações nunca esgotadas. Parece-me que aqui mais uma vez um "fora" se opõe a um "dentro", "fora", porque se me apresenta, e essa apresentação é já aquilo que ele é; "dentro", porque encerra uma série sucessiva que não aparece nem pode aparecer.

A grande distanciação face ao númeno kantiano, reside no facto de que ao aparecer o fenómeno apresenta-se tal como é: apresenta o seu ser, "a aparição não pode ser sustentada por outro ser além do seu" [1] , o problema levanta-se agora: qual a natureza desse "ser" que se mostra no "aparecer"? É precisamente esta a problemática agora inaugurada, a busca do ser do fenómeno, ou "o ser da aparição" [1] .

Sartre coloca-se ainda diante daquilo a que Heidegger chamou a diferença ontológica, o ser do fenómeno, e o fenómeno doser. 

Na sua perspectiva ofenómeno doser, é revelado "por algum meio de acesso imediato; o tédio; a náusea, etc., e a ontologia será a descrição do fenómeno do ser tal como se manifesta, quer dizer, sem intermediário" [1] , enquanto o ser do fenómeno constitui em si mesmo o conjunto "objecto - essência" [2] ; um todo organizado, e aqui a essência não está no objecto, mas é o objecto, é o seu sentido. O ser do fenómeno não se esconde atrás da aparição, mas é um todo nessa mesma aparição.

Na perspectiva fenomenológica de Husserl, toda a consciência é consciência de alguma coisa, significa isto precisamente que a consciência não tem "dentro", ela assume a sua existência naquilo que não é ela. Como afirma Sartre "o primeiro passo de uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo, a saber, a consciência como consciência posicional do mundo. Toda consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objecto, e ela esgota-se nesta posição mesma: tudo quanto há de intenção na minha consciência actual está dirigido para o exterior, para a mesa; todas as minhas actividades judicativas ou práticas, toda a minha afectividade do momento, transcendem-se, visam a mesa e nela se absorvem" [1]

Esta toca profundamente nas limitações do cogito cartesiano. Descartes, atingiu a consciência reflexiva e deteve-se nela. A fenomenologia compreendeu que a consciência não se pensa a si própria; ela é sempre em relação a alguma coisa, e é o transcender-se que lhe devolve o seu ser. Sartre, vai mais longe e afirma a consciência pré-reflexiva, quer dizer, primeiro está o meu agir imediato, antes de qualquer reflexão consciente, "a consciência não reflexiva torna possível a reflexão: existe um cogito pré-reflexivo que é condição do cogito cartesiano" [1] . Dizer que tenho consciência de uma dor, um sentimento, é afirmar o seu modo de existência, a consciência da dor não é separável da própria dor, é o seu modo de ser: consciência imediata de si mesma.

Sartre, alerta ainda para o facto de não podermos tentar definir uma dor por exemplo pela consciência que dela temos, pois isso "seria cair ainda em um idealismo da consciência" [1] . A dor (ou a consciência da dor), é um acontecimento concreto, pleno e absoluto. 

Esta introdução é deveras importante para chegarmos à parte principal da questão: a de se compreender que na verdade a existência precede a essência. Este é realmente o ponto de partida da filosofia existencialista, a de que a existência precede a essência, "como a consciência não é possível antes de ser, posto que seu ser é fonte e condição de toda possibilidade, é sua existência que implica sua essência" [1] .

Gostaria ainda de referir dentro desta curta introdução à filosofia de Sartre, aquilo a que este chama "a prova ontológica". Como já disse "a consciência é consciência de alguma coisa" [1] , diz-se portanto que a própria consciência só se define através daquilo que ela não é. Quer isto dizer que "não existe ser para a consciência fora dessa necessidade precisa de ser intuição reveladora de alguma coisa, quer dizer um ser transcendente" [3] . Daqui surgem os dois tipos distintos de ser; o Para-si, ou o ser da consciência que se opõe ao ser Em-si, do fenómeno, este último caracteriza-o Sartre como plenitude, o ser em si é pleno e "cheio" de si, ele é, ele é em si, ele é o que é, estas são as características do ser Em-si, ou o ser do fenómeno. A densidade do ser Em-si, acentua o afastamento entre os dois tipos de ser. Sartre tem consciência desse problema, comparando-o ao problema com que Descartes se confrontou depois de ter acentuado o dualismocorpo – alma.

È nesta luta constante entre o Em-si e o Para-si que Sartre situa a sua ontologia, e que serve simultaneamente de base para o seu existencialismo. É pela participação no ser em si ( ou do fenómeno ) que o homem assume a sua contingência . É esta participação que torna significante a " náusea " sartriana. Esta não é mais do que a consciência da facticidade humana , da sua coisificação. Não escolhi nascer neste lugar, nesta família, nesta situação . A minha herança de ser jogado no mundo é a minha facticidade, o meu ser concreto no meio dos outros objectos. È esta situação particular a causa da absurdidade da minha existência. 

Mas face à plenitude do Em-sio homem refugia-se no Para-si e cria aí um distanciamento , uma fissura a que corresponde aquilo a que Sartre chama o " nada". É através do Para-si (ou da consciência ) que o homem se projecta continuamente como doador de sentido à sua existência. 

Estas considerações presentes e desenvolvidas até à exaustão no seu ensaio de ontologia fenomenológica [1] são importantes para este trabalho, na medida em que a pequena obra[4] sobre a qual me irei debruçar mais detalhadamente, pressupõe uma tomada de posição assumida neste ensaio.

Tentar articular de forma coerente o pensamento humanista de J. P. Sartre com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (D.U.D.H.) não é tarefa fácil, e podendo parecer realmente difícil uma conciliação, tal não se verificará se tivermos em atenção a coerência que percorre todo o pensamento de Sartre. 

O Homem de que fala Sartre é o Homem Universal; cada um e todos;ora é esta aplicabilidade universal e abstracta que compromete a D.U.D.H.. Sem uma análise reflexiva do homem em si mesmo, na forma já exposta nas páginas iniciais deste capítulo, torna-se impossível uma aplicação da D. U.D.H.. Isto porque se mistura e confunde liberdade e voluntarismo, ser e dever ser.

Jean - Paul Sartre é um filósofo do nosso século. Como tal partilhou profundamente os grandes problemas que o atravessaram nomeadamente a segunda grande guerra. Não poderia portanto deixar de ser um homem comprometido com o seu tempo. Para a sua obra literária transpôs o seu pensamento realçando os aspectos cruciais da sua filosofia. A "Náusea" é uma clara demonstração da situação do existente, do sem sentido, da sua absurdidade e angústia. A personagem Roquentin, agrega em si todas as particularidades da filosofia sartriana. O peso da existência, a coisificação que representa a presença da "Náusea", o abandono, a solidão humana. Todos estes aspectos são intensamente trabalhados não só nesta obra, mas por exemplo, também na trilogia "Os Caminhos da Liberdade". Todas estas obras nos apresentam personagens, tortuosas, martirizadas, e com vidas desprovidas de sentido.

Sartre pretende situar o homem no confronto com uma existência absurda. Na medida em que o ser humano devido à sua facticidade, ou seja, à sua situação de ser jogado no mundo, não pode escapar a essa materialidade, encontra-se perfeitamente em fuga de si. A existência é vista então como uma carga sem razão, daí a "Náusea".

O existencialismo não é portanto uma filosofia puramente teórica, mas sim uma filosofia baseada na experiência real do homem no mundo.

Como vimos no início deste capítulo, a obra de que parte todo o pensamento de Jean--Paul Sartre é o Ensaio de ontologia fenomenológica - O Ser e o Nada. É aqui pois, que se encontram os elementos fundamentais para compreendermos a filosofia existencialista de Sartre.

Como vimos, Sartre distingue duasdimensõesdo Ser-o Em-si e o Para-si. O Em-si, representa tudo o que não é consciência, toda a materialidade, é por isso pleno, maciço, cheio, dá-se à consciência como gratuito e absurdo. É pela participação no Em-si que o homem entra na "Náusea", esta participação dá-se pelo facto de o homem ter um corpo, viver na materialidade, encaixado num feixe de estruturas que o subjugam. Quando imerso no Em-si, o homem é coisa, depende de um passado, do seu contexto histórico. Esta substancialidade opõe-no à liberdade, à escolha. Daí, o dualismo intransponível entre o Em-si e o Para-si, há um abismo que os separa.

Este corpo que carrego, opõe-se à minha consciência, ao Para-si. Esta pelo contrário é transparência, é através da consciência que o homem se distancia das coisas e procura um sentido para a existência, para o sem sentido do ser-em-si. A consciência apresenta-se então como projecto, como permanente afastamento do Em-si. O risco permanente á a possibilidade de não o conseguir e de se deixar envolver pela sua viscosidade.

O elemento que funciona como quebra entre as duas dimensões do Ser é a liberdade. Essa liberdade apresenta-se como o "Nada", este nada corresponde à possibilidade quesó o ser humano tem de dizer não. É introduzindo a negatividade na consciência que o homem abre uma brecha, se distancia do Em-si e penetra na existência. A liberdade apresenta-se assim não como uma qualidade do existente, mas sim como o elemento que faz parte de si, só ela é capaz de arrancar o homem da absurdidade do mundo. Esta liberdade é absoluta, mas é também uma liberdade situada. Veremos mais detalhadamente esta questão no capítulo seguinte, quando for abordada a problemática humanista na filosofia de Sartre.

O homem comprometido na existência decide livremente o seu projecto, realiza-se na sua acção contínua, ultrapassando os obstáculos da sua condição. Não há moral prévia para um existencialista, cada valor corresponde a uma escolha espontânea e livre, mas como veremos, a escolha implica sempre uma responsabilidade absoluta.

O problema da liberdade carrega a consequente solidão do homem. Na medida em que é a liberdade que afasta o homem da viscosidade do Em-si, da materialidade, ela afasta-o também do "outro". Este afastamento dá-se porque o "outro" se nos apresenta sempre impenetrável. Tentar o envolvimento com o "outro" é reduzi-lo à materialidade, daí o constante conflito das relações humanas. "Misturar-me" com os "outros é alienar-me, por essa razão as relações humanas traduzem-se sempre numa luta constante de domínio.

A coexistência só pode ser vista em termos da negação constante do "outro", este tende sempre a coarctar a minha liberdade e eu a dele. Para Sartre as relações humanas serão sempre fonte de negação do eu. Não há forma de ultrapassar esta questão num plano em que a luta da consciência é de constante superação de si mesma.

Será interessante confrontar estes pressupostos do pensamentos sartriano com a defesa que faz do existencialismo na sua obra "O Existencialismo é um Humanismo".

CAPÍTULO DOIS

O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO

Sartre, depois de confrontado com as críticas ao seu Ensaio de ontologia fenomenológica - O Ser e o Nada(1943) proferiu uma conferência no «Club Maintenant» a que chamou "O Existencialismo é um Humanismo". Nesta exposição surgem de formacoerente os argumentospara justificar o existencialismo como uma doutrina plenamente optimista, na medida em que consagra o homem como "absoluto". Parte da análise desse "absoluto", foi a que dediquei ao primeiro capítulo deste trabalho. Esta segunda parteversará sobretudo a explicação do verdadeiro humanismo na filosofia existencialista de J. P. Sartre, assim como a principal questãoa propósito da existência humana - a liberdade. Como afirma Virgílio Ferreira, esta "é a questão fundamental em toda a obra de Sartre"[1] .

A preocupação de Sartre neste opúsculo é o esclarecimento a propósito das sucessivas críticas a que foi submetido. Criticam o existencialismo por ser uma doutrina do quietismo, do desespero, deixando o homem preso e completamente abandonado ao seu desespero. Criticam-no por se limitar a apontar no homem aquilo que ele tem de mais vil; o viscoso, o tédio em que mergulha a sua existência. Criticam-no ainda pelo lado cristão por negar a grandiosidade dos feitos humanos e de pura e simplesmente afirmarem que se Deus não existe "só nos resta a estrita gratuidade, podendo assim cada qual fazer o que lhe apetecer"[1] . É essencialmente a estas críticas e acusações que Sartre se propõe responder. Tentarei seguir aqui o seu discurso, já que é apoiado na sua argumentação que poderei tentar uma conciliação com os pressupostos de uma D.U.D.H..

Sartre afirma o existencialismo como umadoutrina que torna possível a vida humana, por outras palavras, só pela assunção da premissa "a existência precede a essência", é possível ao homem viver enquanto tal. Não é o existencialismo que, mostrando aquilo que de pior há no homem, é pessimista, é precisamente o seu inverso, só mostrando dessa forma despudorada a realidade da vida humana é possível mostrar ao homem as suas possibilidades. Como afirma Sartre o que nos choca nas personagens dos seus romances, é que eles não são assim por puro determinismo, por algo que lhes é exterior, mas sim porque nos seus actos, na sua forma de acção, eles assim o escolheram. É isso que nos choca e angustia. Quando sei hoje de alguém que cometeu tal ou tal crime hediondo, digo, é inumano, mas a verdade que fere, que choca, não é o crime em si, é antes o ter sido praticado por um igual a mim, não há inumano, tudo é humano.

Tudo remete então em última análise para a escolha; o homem é livre para escolher, ou melhor, é o seu modo de ser, o modo de ser do homem é ser livre. Isto significa não, que primeiro o homem nasce e depois é livre, mas sim que a liberdade é já ela contemporânea do "Para-si" ou da consciência.

É por isto, e voltando à questão principal, que o existencialismo, na perspectivade Sartre, ultrapassa a moda, ou a extravagância. A sua divulgação foi tal que "a palavra tomou hoje uma tal amplitude e extensão que já não significa absolutamente nada"[1] . Mas para todos os que pensavam que o existencialismo era uma moda de vanguarda, Sartre apresenta-o como uma doutrina austera e estritamente para filósofos [5] . Duma forma geral poder-se-á definir o existencialismo como a doutrina segundo a qual tal como já afirmei, a existência precede a essência, ou como Sartre afirma, "que temos de partir da subjectividade"[6] . Para utilizar o exemplo do próprio Sartre, para a realização de um qualquer objecto produzido pelo homem, é necessário um conjunto de características, de "receitas"[7] que permitirão a sua caracterização. Neste caso digo que a essência precede a existência, há um conjunto de elementos que permitirão a sua real existência. Ora é precisamente isso que acontecia na realidade humana tal como estaera perspectivada numa concepção teísta do mundo. Se concebermos um Deus criador, então é perfeitamente natural que existe uma essência que antecede a existência, ou seja, há realmente uma natureza humana, natureza essa, que lhe advém do seu agente criador.

Mas se pelo contrário, assumirmos que tal não acontece, que é o mesmo que afirmar que Deus não existe, então aí o homem fica abandonado a si próprio e compreende que a sua essência só se concretiza na sua existência efectiva. Não há essência, tal como no caso de um objecto concebido pelo homem, numa mente divina, que depois a concretiza na existência. Ora se não há um agente criador, "há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana"[1] .

O que significa então dizer que no homem, a existência precede a essência? Significa simplesmente que primeiro o homem é e só depois se define [1] , significa que o homem é aquilo que ele mesmo se faz, ou seja, é no seu fazer-se contínuo que o homem se define, por isso, não podemos defini-lo previamente, já que antes ele não é "nada". Não ser "nada", é o estado de consciência (de) si [8] , já que na consciência posicional, o homem se encontra "atirado" para fora de si "é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projectar no futuro"[9] .

Para Sartre, o homem é projecto, ou seja, ele é aquilo que tiver projectado ser, de notar que isto não significa que ele seja aquilo que quer ser, isto porque querer já em si subentende um acto plenamente consciente, quando digo que querer algo, assumo neste acto uma intenção, ora nessa intenção, está implícito um projecto, um projecto que implica necessariamente uma escolha. Por outras palavras, a escolha originária, tem anterioridade face à vontade manifestada. É precisamente por esta razão que não se pode cair na tentação de confundir a liberdade de que nos fala Sartre, com o voluntarismo. Posso então afirmar que se o homem é o seu projecto através da escolha, afirmo então que o homem é da sua inteira responsabilidade, e não só da sua enquanto indivíduo, mas de todos os outros homens.

Sartre, afirma haver dois sentidos para a palavra subjectivismo, por um lado, significa escolha do sujeito individual por si próprio, e por outro lado "impossibilidade para o homem de superar a subjectividade humana"[1] . É este último sentido que verdadeiramente interessa ao existencialismo e daqui o seu carácter humanista: quando escolho, escolho através do meu projecto todos os outros homens, e isto, porque em todos os meus actos, não há um único que não aponte para aquilo que deve ser. Significa isto que sempre que escolho, determino um valor. É este carácter de contínua afirmação de valores que caracteriza a minha acção. Ora como quando escolho, escolho o bem para mim,; é esse bem que implicitamente escolho para toda a humanidade. 

Poder-se-á objectar aqui, que se de facto, sou eu que escolho, que me construo, através do meu projecto, porque não pensar que o "bem" que escolho é um "mal"? Sartre possivelmente responderia que na minha escolha crio uma imagem daquilo que penso que o homem deve ser e este homem é não o homem que sou, mas o homem universal, toda a humanidade numa determinada época. 

É porque esta responsabilidade engloba toda a humanidade que ela supera o subjectivismo individualista. Qualquer que seja a minha opção pretendo com ela ser a escolha universal. É por esta razão que o homem não pode escapar aos sentimentos de angústia e desespero. "O existencialismo não tem pejo em declarar que o homem é angústia"[1] . Quer com isto dizer que o homem não pode escapar a um sentimento profundo de responsabilidade quer perante si próprio, quer perante a humanidade inteira. Por outras palavras, se o homem é ao fazer-se, é claro que, não pode deixar de se projectar continuamente nas suas escolhas, não o fazer, será negar-se a si mesmo. É claro que existem homens, que não vivem, ou não se sentem, mergulhados em angústia, mas isso porque acreditam que ao agirem só se implicam a si mesmos nas suas acções [10] e o facto é que se se lhes pergunta "e se toda a gente fizesse assim?"[11] eles responderiam: nem toda a gente faz assim. É apaziguador pensar que existem os "outros" que sempre se encarregarão de agir por nós, de fazer o nosso trabalho, de executar os grandes projectos. Pensar assim acreditando no que se pensa é agir de má fé. Este conceito de má fé, na filosofia de J. P. Sartre assume uma enorme importância. A má fé é o enganar-se a si mesmo, acreditando na própria mentira, ou seja, é fazer da própria mentira a verdade. É certo que eu posso sempre argumentar que sou vítima das circunstâncias, que elas me limitam a minha acção. É disto que falamos, quando falamos em limitações da realidade humana. É isto que quero dizer quando afirmo que tal ou tal coisa me acontece, que eu não posso evitar. Mas na perspectiva de Sartre, e numa total coerência de pensamento, isso é má fé. As circunstâncias são aquilo a que chama situação, mas é na situação que o homem escolhe e não pode deixar de o fazer. Daí a condenação de liberdade, mesmo mantendo-me numa posiçãode má fé, eu escolho essa tomada de posição. Não escolher, é ainda escolher, manter-me numa tal posição é mascarar a minha angústia e o meu desespero. Assumir a minha responsabilidade é assumir a minha condição angustiante perante o mundo e perante os outros homens. Há sempre um caminho a seguir no rol das possibilidades, e assumir esse caminho, é assumir a minha condição de homem no mundo. 

Ignorar a minha condição de homem é ignorar-me enquanto tal. Esta espécie de angústia afirmada pelo existencialismo explica a responsabilidade integral que me força à acção perante mim e perante os outros.

Esta posição é absolutamente coerente com a posição que Sartre assume face a um total ateísmo. Se Deus não existe, então não fazem sentido os valores afirmados por uma tradição fundada na existência de um absoluto. Os valores na acepção de Sartre, têm origem no homem, nas suas escolhas.

Quando escolho um valor, escolho-o para todos os homens, é assim que algo assume valor, valor para mim, valor para todos. Se eu escolho uma possibilidade, atribuo-lhe um valor. Só através de uma posição que ignora Deus é possível ignorar também uma ordem moral previamente estabelecida. Como afirma Sartre, não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, não há normas à priori de moralidade [1] .

Na medida em que estamos num plano em que somente existem homens (já que Deus não existe), o homem é que, pelo seu contínuo fazer-se, constrói a sua próprio moralidade. Dizer que a natureza condiciona o agir humano, é o mesmo que afirmar o determinismo, e isto é impossível, ou então a existência não precederia a essência. Se não há essência humana antes, significa que tudo o que o homem é tem origem na sua acção. Para se manter numa total coerência de pensamento, Sartre não pode deixar de se manter fiel ao seu ateísmo. "Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas consequências"[1] .

Só através da hipótese da existência de Deus, seria possível afirmarmos a existência de um mundo com valores à priori. "Para o existencialista, pelo contrário, penso que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível " [1] .

Como afirma Sartre é este o ponto de partida do existencialismo. Nesta posição o homem vê-se perdido e abandonado na sua existência. Não encontra dentro nem fora de si nada que lhe aponte o caminho a seguir, já não há regras pré-definidas de comportamento humano, todas as regras são válidas, porque todas são fruto de condutas humanas. Significa isto que o homem não tem desculpas, deve assumir inteiramente as suas responsabilidades, já que não pode deixar de o fazer. Fazê-lo é colocar-se na posição de má-fé. Não há aqui lugar para qualquer tipo de desculpas. O homem deve assumir inteiramente a sua condição de ser livre, o homem é liberdade. E esta liberdade é expressa por Sartre em termos de condenação. Condenado porque o homem não se criou a si próprio, livre, porque essa é a sua forma de ser, já que não pode ser de outro modo. Só o homem é livre, porque só o homem se realiza nesta condição. 

É nesta condição que o homem se compromete, de salientar que este compromisso que só se concretiza na acção, só está dependente de mim. Quando se fala em possibilidades humanas estas só têm rigor absoluto na minha acção concreta. Quer isto dizer, que não posso estar de forma alguma dependente da acção quer presente quer futura dos outros homens. Acredito nas acções dos homens, quando elas estão de alguma forma implicadas pelas minhas próprias acções, ou seja, enquanto elas dependem de alguma forma do meu próprio agir. Confiar que os outros farão alguma coisa no futuro, será confiar num conjunto de possibilidades de que não tenho meios positivos para acreditar, isto, porque o mundo será aquilo que os homens quiserem que seja no futuro. Não posso saber. nem mesmo prever, o que outros farão daqui a vinte anos, só posso é comprometer-me hoje na acção de forma a que hoje eu seja aquiloque considero que é o melhor para mim e consequentemente para todos. Vê-se assim claramente que desta forma o homem ao assumir a inteira responsabilidade dos seus actos, assume da mesma forma a responsabilidade de todos os outros homens. 

Se o homem se projecta para fora de si, e se no seu contínuo fazer-se ele procura a sua perfeição, então é claro que o existencialismo aponta claramente para um optimismo, e não para um pessimismo como tem sido acusado. A história humana é então só um conjunto dos actos realizados pelos homens, e como o homem é essencialmente futuro, o futuro do homem será aquilo que homens livres como eu farão da sua acção. Não me posso sentir responsável pelas acções futuras de outros homens livres. A história futura será aquilo que os homens quiserem que seja, e essa será a verdade humana. Só cabe ao homem decidir a sua verdade. 

Fica assim clara a posição existencialista acerca da realidade humana. O homem é liberdade e só dessa forma é possível a sua expansão. A sua contínua expansão é o seu viver, não há escapatória a não ser na morte, e a morte é o culminar das minhas possibilidades.

CAPÍTULO TRÊS

EXISTENCIALISMO E DIREITOS HUMANOS

Resta agora saber se esta posição é conciliável com aquilo a que chamamos hoje os direitos do homem. Se considerarmos que estes direitos são um conjunto normativo, aplicáveis à existência humana, e que enquanto tal, são anteriores à sua existência concreta, então não são conciliáveis com a posição existencialista. Pelo contrário, se considerarmos que o homem ao escolher-se , escolhe necessariamente a humanidade, então podemos considerar o existencialismo um verdadeiro humanismo, e aí, os direitos humanos são aquilo que o homem busca por excelência.

Se o homem escolhe sempre o melhor para si mesmo, então escolhe o melhor para todos. Se aquilo que escolhe é um mal, e se esse mal se reflecte nos outros, então, é porque os outros, são suficientemente fracos para aceitar um mal, e é precisamentepela inércia a que o homem se vota, que o mal pode triunfar. 

Referindo-me especificamente ao caso dos direitos humanos, vê-se que aquilo que aparece antes de qualquer normatividade, é o direito natural. Numa sociedade do direito natural, cada homem se rege pela sua acção livre em total harmonia com a natureza O direito contratual surge quando o homem decide sacrificar a sua liberdade, na condição de os outros fazerem o mesmo, ou seja, o homem decide em seu benefício separar-se do estado natural para melhor gerir o seu destino. Ao submeter-se a regras, fá-lo em seu benefício. Isto só tem sentido profundo se o homem considerar esse conjunto de necessidades, que podem ser de segurança, ou de paz, como o exercício da sua vontade, quer isto dizer que a normatividade não pode ser uma força que lhe é imposta do exterior, mas sim do seu interior. Sendo assim, e na medida em que me cabe sempre decidir, uma posição como a que é tomada pelos autores existencialistas não colide com a aspiração aos mais elementares direitos.. Vemos no entanto que mesmo no interior de uma filosofia, seja ela qual for, as posições não são sempre convergentes. O mesmo acontece no caso do existencialismo. O existencialismo de Sartre é o seu, e diverge pelos pressupostos que aceita do de K. Jaspers, ou do de G. Marcel. Dentro de uma posição que defende um existencialismo ateu, encontramos ainda Albert Camus, que na minha perspectiva apresenta um grande empenhamentono confronto com a realidade face a problemas concretos, nomeadamente no que se refere ao problema dos direitos humanos. 

Para Camus, a vida humana apresenta-se como "absurdo", e apesar de podermos pensar que esse absurdo é inultrapassável, Camus, considera que é esse mesmo absurdo que nos dá um sentido para viver. Ao aceitarmos essa posição, ficamos livres para encarar a nossa existência sem subterfúgio (aquilo a que Sartre chamaria má fé). "O sentimento de absurdo, por um lado, e a alegria de viver própria da criatura, por outro, levavam-no a uma atitude de alegria de viver sem ilusões, mas cheia de paixão. É precisamente essa atitude a que ele chamará absurdo"[1] . Desta forma, aquela angústia que atravessa o homem e da qual não pode fugir, é assumida em Camus como doadora de sentido. Aquilo que Camus contesta explicitamente, é a indiferença e a falta de compromisso, tal como descreve "Camus não quer escapar à guerra. Decide apresentar-se como voluntário e escreve [..]... por muito ignóbil que esta guerra seja [...] não é permitido ficar de fora. Para mim naturalmente e em primeiro lugar - que posso arriscar a minha vida apostando na morte sem receio" [12]

O homem deve resistir e comprometer-se na acção por aquilo que considera o melhor. Para Camus, a vida humana é um valor inalienável, um valor que não pode ser violado por nenhuma razão. Acima de qualquer valor, está o valor de uma vida humana, e face a esta posição, Camus condena aquilo a que chama abstracção intelectual, que ignora o sofrimento físico. "Para Camus, a atitude em relação à vida humana concreta constitui o critério de diferenciação das pessoas: por um lado, consentimento no aniquilamento de pessoas em nome de um princípio ideológico, por outro, a defesa do homem"[1] .

Albert Camus, não compreende que em defesa de certos ideais, se sacrifiquem vidas humanas. As incompatibilidades com Sartre, situam-se em parte devido à posição assumida por este último, face à situação vivida na ex-União Soviética de Estaline. A existência dos campos de trabalho, era ainda objecto de discussão no círculo de Sartre, e isso, porque a União Soviética, se apresentava como uma expressão de mudança revolucionária. Sendo assim, o sofrimento humano era considerado secundário, ou então era visto como elemento necessário à plena realização dos princípios ideológicos em jogo. Esta posição, foi claramente rejeitada por Camus, considerando que era extremamente fácil pensar a história, quando a situação em que se vive é privilegiada, e não se está exposto ao sofrimento. 

No entanto, para ser coerente com o que foi dito atrás, o que está aqui em causa, não é o valor da vida humana, já que isso é inquestionável, é sim a possibilidade que mesmo numa situação precária e de abuso sistemático, o homem pode sempre ainda escolher o seu caminho. Sartre acaba por considerar a " situação " como o único elemento capaz de condicionar o existir humano. O que na realidade importa é que mesmo assim o homem pode sempre decidir por si a partir daquilo que as condições dele fizerem. O que não pode é abandonar-se à quietude, isso seria imergir totalmente na opacidade do Em-si. 

Não há numa perspectiva existencialista fuga possível a esta realidade, o que por outro lado, também não impede que homens sem escrúpulos e no desrespeito pela humanidade se sirvam de outros homens para explorar e reduzir a objecto. 

Temos pois que distinguir entre as simples boas intenções, herdeiras de uma tradição humanista, e a realidade concreta, efectiva que nos interpela. È sempre pois necessária a acção . Só pelo compromisso na acção concreta é possível afirmar o verdadeiro humanismo.

Sartre e Camus estiveram sempre empenhados nas lutas pelo humanismo real e concreto. Da luta pela libertação, passando pela guerra da Argélia(mais directamente no caso de Camus) , foram mais do que quaisquer outros defensores activos e comprometidos no ideal humano. Dessa forma mais do que propagandear um conjunto de normas morais , estes autores apontam para um compromisso efectivo junto das situações que realmente escravizam e mutilam o homem.

Desta forma considero que apesar de possíveis incompatibilidades com a Declaração Universal dos Direitos do Homem , o existencialismo aponta vivamente para a superação efectiva das suas exigências, com vista à libertação do homem.

CAPÍTULO QUATRO

UMA VISÃO DO FUTURO

Neste penúltimo capítulo gostaria de expor aqui um pensamento que considerei extremamente interessante quando nos debruçamos sobre a existência dacrueldade humana. Este problema é fundamental na medida em toca de perto a problemática dos Direitos Humanos. Devo reconhecer a minha ignorância em relação ao autor em causa o que, não impediu que tenha acolhido a leitura deste seu livro [1] com enorme entusiasmo.

Não relevando aqui a problemática da contingência da linguagem, já que isso implicaria uma análise exaustiva de toda a obra deter-me-ei sobretudo na problemática da solidariedade humana como forma de ultrapassar uma questão legítima como por exemplo " porque é que não devemos ser cruéis? " já que disso que se trata aqui essencialmente.

Vemos claramente que se percorrermos a nossa tradição filosófica encontramos naquilo a que chamei tradição humanista, autores que pelo facto de afirmarem o primado da razão apontavam para a excelência humana apoiada durante muitos séculos por concepções teístas. Só desta forma encontravam fundamento paraa procura do Bem universal . Mas por mais que procuremos não encontramos resposta para perguntas como " porque não devemos ser cruéis ? "" porque devemos ser amáveis? " Respostas a estas perguntas apontam sempre para concepções metafísicas liberais, e a defesa destas posições converge sempre para argumentos circulares. Há sempre a tendência para considerarmos estas interrogações sem sentido.É talvez por esta razão que filósofos como Nietzsche foram repudiados insistentemente. Como aceitar a " morte de Deus " e a destruição de todos os valores ? A sua autonomia de pensamento, o seu poder criador choca pela falta de pudor com a tradição humanista e o seu pensamento apresenta-se como uma filosofia sem coração.

Para Richard Rorty só há uma forma de pensamento que assegura o repudio a qualquer forma de crueldade " O que importa para a ironista liberal[1] não é encontrar tal razão, mas assegurar que nota [13] o sofrimento quando este se dá " [14] . Para Rorty mais do que apoiar-se nos teóricos do pensamento , o " ironista liberal " procura nos poetas, nos romancistas e na arte em geral ocasião para reinventar o mundo.

A grande problemática em volta da solidariedade humana reside segundo este autor na grande incapacidade que nos atinge de olhar o " outro" como um " eu ". Assumimos sem qualquer esforço que todas as formas de crueldade são insustentáveis. Vemos com clareza que exemplos como o nazismo, a exploração de menores nos países subdesenvolvidos, a torturaetc. ,nos parecem indicar que alguma coisa falha, é como se faltassea todas esseshomens uma componente essencial ao homem integral. 

Mas se partirmos duma posição em que repudiemos quaisquer conceitos tais como o de " essência " ou" natureza humana " não nos é possível considerar tais atitudes como desumanas. A concepção que retemos de homem integral , de pessoaaparece-nos inevitavelmente ligada às circunstâncias históricas, e é dentro desse contexto que avaliamos as suas condutas como justas ou injustas. Em circunstâncias excepcionais ou de ruptura tudo se altera. É desta forma que consideramos o homicídio insuportável mas ignoramo-lo por "aceitável " em tempo de guerra. 

Só vendo o outro como"um de nós"é possíveldar algum sentido à noção de solidariedade para com os outros. E isso implica o romper das barreiras que nos fazem pensar os outros como "eles" . Nesta perspectiva deveríamos ser capazes de ignorar as diferenças culturais, religiosas, sobrepormo-nos a toda a marginalização e integrar o " outro " na nossa esfera. Não reduzi-lo a nós, às nossas crenças, às nossas visões do mundo. Isso implicará sempre uso do poder e consequentemente subjugação do " outro ". Passar de " eles " para "nós " é o único critério de que dispomos para percebermos que a crueldade é aquilo que não podemos de forma alguma suportar.

Como veremos mais à frente, através das consideraçõesem torno de Georges Orwell, e da sua obra 1984 podemos vercomo é que um livro pode assumir um papel socialmente útil.Rorty sugere que distingamos livros que possam ajudar " a tornar-nos autónomos e livros que nos ajudam a tornar-nos menos cruéis " [1] .

O livro que vou tratar aqui é como já disse o 1984 de Georges Orwell porque partilho com Rortyque " é relevante para as nossas relações com os outros, para nos ajudar a notar os efeitos das nossas acções sobre as outras pessoas" [1] . Trata-se aqui, e ainda na leitura que o autor faz de Georges Orwell de mostrar como 1984 pretende sensibilizar para formas de crueldade e humilhação que podem passar despercebidas. 

A visão do mundo tal como esta nos é revelada em 1984 faz-nos vislumbrar o que poderá ser uma realidade futura. A grande profundidade e crueza , principalmente representada por O'Brien reside na sua realidade potencial.No sentido da sua plena actualidade , as obras de Orwell não estão ainda superadas e para nós seria bastante mais apaziguador se nunca tivessem existido. 

Seguindo a interpretação que Rortyfaz principalmente da última parte de 1984 onde o personagem O'Brien assume total protagonismopodemos ver este personagem como o intelectual do futuro " Convenceu-nos de que todos os dotes intelectuais e poéticos que tornaram possível a filosofia grega , a ciência moderna e a poesia romântica poderiam um dia ser empregues no Ministério da Verdade " [1] . O que nos perturba e assusta é que O'Brien é perfeitamente possível. Nada apresenta de louco, ou desorientado, a sua conduta é ponderada e por isso mesmo aterroriza.Não está sequer aqui em causa o problema da verdade . A relação que se cria entre Winston e O'Brien é o puro exercício do poder .

Que importa a verdade de "dois mais dois ser igual a quatro" se não posso afirmar essa verdade em que acredito livremente com os outros. A autonomia de pensamento perde assim todo o sentido. Não é a verdade que está em jogo, o que verdadeiramente importa é a possibilidade que temos de discutir aquilo em que acreditamos e que assumimos como as nossas verdades. Se " dois mais dois é igual a quatro " é absolutamente irrelevante .Tenho é de preservar a minha liberdade.

Nesta perspectiva a ideia de uma liberdade interior perde toda a sua força assim como a de " indivíduo autónomo" , isto acentua a tese da inexistência de uma natureza humana. Se um indivíduo é capazatravés da tortura e de humilhação sucessivas abdicar do seu conjunto de crenças que na verdade constituem o seu eu, então não faz qualquer sentido falarmos de uma natureza humana intrínseca. "Não há nada nas pessoas excepto o que se socializou nelas - a sua capacidade para utilizar a linguagem e, desse modo, para trocar crenças e desejos com outras pessoas. Orwell reiterou esta posição quando afirmou que «abolir distinções de classes significa abolir uma parte de nós próprios» " [1] .

A nossa socialização depende da nossa contingência histórica. O nosso vínculo comum enquanto humanos, é aquele que partilhamos com os restantes animais e que é a capacidade de sentir dor. Quando me refiro a personalização , quero significar o homem , partilhando uma linguagem e um conjunto de crenças. A este homem pode-se infligir dor duma forma diferenciada através da humilhação . Desta forma é possível ( tal como acontece a Winston ) despedaçar as suas crenças reduzindo-o a um mero invólucro . Esta é função do Ministério da Verdade . Aqui os espíritos podem desmontados e remontados prontos a aceitar qualquer " verdade ".

Este é o objectivo da tortura , mais do que infligir dor física o carrasco têm prazer na humilhação a que submete as suas vítimas." A tortura não têm por finalidade fazer com que as pessoas obedeçam, nem tem por finalidade fazer com que acreditem em falsidades. Tal como diz O'Brien, «o objecto da tortura é a tortura»" [1] . Conseguir como O'Brien, fazer Winston acreditar que dois mais dois são igual a cinco, significa destruir aquilo em que acredita. Ao negar a sua crença Winston nega assim a sua existência enquanto pessoa capaz de racionalizar não mais será capaz de articular as suas crenças, os seus valores. Destruir o eu desarticulando o seu conjunto de crenças, ou por outras palavras, destruindo toda a estrutura da sua vida é função do Ministério da Verdade. 

Aquilo que mais aterroriza neste quadro é precisamente a descrição que Orwell faz do futuro. Se prestarmos um pouco de atenção facilmente perceberemos a precariedade que atravessa o nosso presente. Orwell apresenta-nos um personagem perfeitamente capaz de existir num futuro perfeitamente possível. Basta para tal que se acredite que os ideais liberalistas deixaram de satisfazer, ou não cumprem os objectivos por não serem realizáveis. Infelizmente sabemos hoje como não são irreais pessoas como O'Brien. E o mais assustador é que nem sequer podemos acusá-las de insanidade, a sua lucidez é brilhante" o que Orwell noa ajuda a ver é que pode ter apenas acontecido[1] que a Europa começasse a apreciar os sentimentos benévolos e a ideia de uma humanidade comum, e que pode apenas acontecer[15] que o mundo acabe governado por pessoas a quem faltem quaisquer desses sentimentos e quaisquer dessas moralidades" [16] .

Um aspecto igualmente angustiante, na personagem Winston é a necessidade que este manifesta de escrever no seu diário, e de o fazer como se precisasse de ver os seus pensamentos (crenças) confirmados.

É isso que fazemos no diálogo com os outros. Os outros reafirmam a nossa identidade, a nossa coerência depende da imagem que os outros nos devolvem e das constantes confirmações a que nos submetemos.



[1] J. P. Sartre, O Ser e o Nada, p.16.

[1]

 J. P. Sartre, Op. cit., p. 17.

 

[1] J. P. Sartre, Op. cit., p. 18

[2] Idem, Ibidem.

[2] J. P. Sartre, Op. cit., p. 19.

[3] J. P. Sartre, Op. cit., p. 22.

[3] J. P. Sartre, Op. cit., p. 22.

[3] J. P. Sartre, Op. cit., p. 24.

[3] J. P. Sartre, Op. cit., p. 26.

[3] J. P. Sartre, Op. cit., p. 27.

[3] J. P. Sartre, Op. cit., p. 34.

[4] Idem Ibidem.

[4] J. P. Sartre, O ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica, Petrópolis, 1998

[5] J. P. Sartre, O existencialismo é um Humanismo, Lisboa, 1970.

[5] Prefácio de Virgílio Ferreira, O existencialismo é um Humanismo, p.113.

 

[5] J. P. Sartre, Op. cit., p. 208.

[5] J. P. Sartre, Op. cit., p. 212.

[6] Idem, Ibidem.

[7] J. P. Sartre, Op. cit., p. 213.

[8] J. P. Sartre, Op. cit., p. 214.

[8] J. P. Sartre, Op. cit., p. 216.

[8] Idem, Ibidem.

[9] Ver para uma melhor compreensão o ensaio de J. P. Sartre, O Ser e o Nada, Ontologia Fenomenológica, Petrópolis, 1998.

[10] J. P. Sartre, Op. cit., p. 217.

[10] J. P. Sartre, Op. cit., p. 218.

[10] J. P. Sartre, Op. cit., p. 221.

[11] Idem, Ibidem.

[12] Idem, Ibidem.

[12] Júlio Fragata, O Humanismo Existencialista de Sartre.

[12] J. P. Sartre, Op. cit., p. 225.

[12] J. P. Sartre, Op. cit., p.226.

[12] Brigitte Sänding, Albert Camus, pp. 52, 53.

[13] Albert Camus, Primeiros Cadernos, p. 130, in, Brigitte Sänding, Albert Camus, p. 54.

[13] Brigitte Sänding, Op. cit., p. 67.

[13] Richard Rorty, Contingência, Ironia e Solidariedade, Lisboa, 1992.

 

[13] Para completa compreensão do conceito de "ironista liberal) ver, Richard Rorty, Contingência Ironia e Solidariedade, p. 104.

[14] O destaque é meu.

[15] Richard Rorty, Op. cit., p. 126.

[15] Richard Rorty, Op. cit., p. 179.

[15] Idem, Ibidem.

[15] Richard Rorty, Op. cit., p. 220.

[15] Richard Rorty, Op. cit., p.222.

[15] Richard Rorty, Op. cit., p. 225.

[15] O destaque é meu.

[16] Idem, Ibidem.

[17] Richard Rorty, Op. cit., p. 231.           Voltar ao início da página