Breve biobibliografia de José Régio

Por Luís Miguel Costa

José Maria dos Reis Pereira nasceu em Vila do Conde a 17 de Setembro de 1901. A sua vida é marcada por três meios: Vila do Conde e o seu mar, Coimbra e a sua tradição do tardio século XIX, Portalegre e o mundo largo e ancestral que ela significa.

Filho de Maria da Conceição Reis Pereira (1876-1946) e de José Maria Pereira Sobrinho (1876-1957), terá ficado a dever ao pai um certo e duradouro gosto pela vida, subjacente e teimoso, mesmo nos piores momentos, e também um gosto precoce pelo teatro. Foi ao temperamento materno, nervoso, errático, ansioso, doentio, obsessivo, que foi buscar o seu fundo humano-artístico. José Maria tinha ainda quatro irmãos mais novos: Júlio, artista plástico que como poeta usa o pseudónimo de Saúl Dias, Antonino, emigrado para o Brasil onde faleceu, Apolinário, oficial do exército e artista plástico, e João Maria, autor de um livro de poesia e também dado às artes plásticas.

Ainda muito novo José Maria começa a ler e a escrever. Dos doze para os treze anos escreve o primeiro caderno de versos a que dá o nome de Violetas. Aos quinze anos descobre António Nobre, cujo o impressiona extraordinariamente. É um leitor atento, apaixonado, fiel aos seus amores, perspicaz, mas não um leitor voraz. Gosta de demorar com um texto, meditando-o, interrogando-o frequentemente, abandonando-o provisoriamente para a ele voltar mais tarde. Desconfia mesmo do tipo de leitor devorador de livros. Ler é pois um acto crítico, que se pratica em profundidade, um modo de ir dentro que se consegue pela qualidade e não pela quantidade da leitura.

Os seus primeiros grandes entusiasmos são o Rocamble de Ponson du Terrail e Os dois garotos de Pierre Decourdelle. Outra grande influência, não só da juventude mas de toda a vida, foi Flaubert, sendo possível descobrir uma mundo de encontros e coincidências entre ambos: a solidão, a neurose criadora, a descoberta do trabalho como forma de salvação, a aversão a escolas, a consciência profissional, a recusa da capital com a sua agitação superficial e pretensiosa, as atitudes perante a vida... Grande influência durante os seus anos de formação tiveram ainda a Vida de Jesus de Renan, os Evangelhos, o Antigo Testamento e a Imitação de Cristo.

Entre os catorze e os dezoito anos perdeu a fé. A sua fé nunca tivera um apoio intelectual articulado, havia sido sempre algo muito problemático e poroso à perfídia da dúvida.

Até aos dezasseis anos frequenta o liceu de Vila do Conde, respirando o ambiente familiar da Velha Casa. Esta pequena cidade e a casa foram ao longo da vida o seu refúgio, o regresso ao paraíso da infância, o polo de atracção. Os dois últimos anos do liceu frequenta-os no Porto, num colégio como aluno semi-interno, estando matriculado no Liceu Rodrigues de Freitas.

Terminados os estudos secundários na Póvoa do Varzim e no Porto, matricula-se na Faculdade de Letras de Coimbra, na secção de Filologia Românica, onde conclui a licenciatura em 1925, com uma dissertação revolucionária para o tempo: As Correntes e as individualidades da Moderna Poesia Portuguesa. Esta escolha da cidade do Mondego significava, por implicação, a rejeição da Faculdade de Letras do Porto, onde dominava a figura de Leonardo Coimbra, cuja maciça sedução deixara o jovem José Maria de pé atrás. Perturbado, dividido, inquieto, sedento de clareza e não de brilho é sobretudo António Sérgio quem o atrai e equilibra. Parte para Coimbra aos dezoito anos, após uma grave crise nervosa que durou o período das férias grandes e que a mudança acabará por curar. Crise nervosa a que dá muita importância e onde se revela o seu temperamento quase patologicamente nervoso herdado da mãe.

A estadia em Coimbra prolongar-se-á até 1927. É um período longo de aprendizagem, de descoberta dos outros e de si próprio, numa alternância entre um convívio apetecido e um retiro necessário. Apesar de aluno irregular, raramente indo às aulas, lê intensa e extensamente, surpreendendo os colegas com os nomes desconhecido na Coimbra de então.

Ainda no ano de 1925 dá-se a sua estreia literária, publicando Poemas de Deus e do Diabo, usando pela primeira vez o pseudónimo de José Régio. Os Poemas não tiveram imediatamente uma aceitação espectacular mas foram acolhidos com entusiasmo e perturbação.

Em 1927 funda, com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, a revista e o movimento literário da Presença. A revista pretendia promover um movimento no sentido de revitalizar as letras e as artes em Portugal, promovendo a imagem dos principais argonautas do primeiro modernismo e lançando as bases de uma crítica exigente do estado das letras no país. Os homens da Presença apresentam-se ainda como criadores, aliando às conquistas revolucionárias do primeiro modernismo um sentido de equilíbrio e um arrefecimento crítico pedagógico que lhes vai permitir impor a arte moderna a um público relutante e impreparado.

Do ponto de vista religioso os anos de Coimbra devem ter correspondido à ponta negativa mais acentuada de toda a sua carreira, andando indiferente a qualquer ideia ou sentimento de Deus e vivendo o seu crer não crendo.

Em 1928, José Régio fixa-se em Portalegre como professor do Liceu Mousinho da Silveira, funções que desempenhará durante trinta anos, até 1962 ano da sua reforma. Apesar de afastado geograficamente do centro de produção da revista Presença continua a dirigi-la com Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Em 1930 este último afasta-se, assinando com Miguel Torga e Edmundo de Bettencourt uma carta de despedida. A vaga deixada na direcção da revista é preenchida por Adolfo Casais Monteiro, que permanecerá no cargo até à extinção da revista em 1940.

Depois do vendaval de Coimbra, Portalegre era o isolamento, numa pequena cidade provinciana sem horizontes culturais, sem amigos. Aqui o autor de A Velha Casa leva a cabo uma obra literária notável pela profundidade, pelo volume e pela variedade, fazendo proveito do sofrimento em que vivia.

A mudança para o Alentejo foi-lhe de difícil aceitação. Mas vencida a resistência dos primeiros tempos, acaba por cair numa habituação difícil mas profunda e a estranha casa da Boa Vista iria tornar-se o melhor ambiente de trabalho, a oficina onde a maior parte da sua obra seria elaborada. À medida que vai criando amigos e raizes em Portalegre a vida solitária vai-se-lhe tornando menos difícil, às vezes quase aprazível. O tédio e o desespero tornam-se, também, promotores de criação; o autor assume e utiliza a solidão mas, no fundo, não se resigna a ela.

Como professor era meticuloso, distante, austero. Tinha um cuidado extremo em não faltar às aulas e interesse pelas actividades dos estudantes, chegou mesmo a escrever e a ensaiar uma peça de teatro com os seus alunos.

Os anos de Portalegre foram sobretudo anos de criação. Em 1929 publica Biografia, uma colectânea de sonetos. Em 1934 publica o seu primeiro romance, o Jogo da Cabra-Cega, onde se revelam algumas das suas tendências mais salientes: o pendor analítico, o gosto pelo anormal como catalisador da personalidade mais profunda do ser humano, a vontade espectacular e teatralizadora e a atitude irónica, sarcástica e permanentemente interrogadora.

Em 1936 publica As Encruzilhadas de Deus e o opúsculo Críticos e Criticados (Carta a um Amigo). Em 1938 publica António Botto e o Amor. Em 1940 publica o ensaio Em Torno da Expressão Artística e o Primeiro Volume de Teatro, que inclui o mistério em três actos Jacob e o Anjo e a peça em um acto As Três Máscaras. No ano de 1941 publica a novela Davam Grandes Passeios aos Domingos, o livro de poemas Fado e a Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, refundindo a sua tese de licenciatura. Em 1942 publica o romance O Príncipe com Orelhas de Burro.

Em 1945 publica Mas Deus é Grande, a antologia Poesia de Amor e o primeiro volume de A Velha Casa, o romance Uma Gota de Sangue. Em 1946 publica Histórias de Mulheres, uma colectânea de contos e novelas. Em 1947 publica As Raizes do Futuro, segundo volume de A Velha Casa, e a peça Benilde ou a Virgem-Mãe. Em 1949 publica o poema espectacular El-Rei Sebastião. Em 1953 publica o romance Os Avisos do Destino, terceiro volume de A Velha Casa. Em 1954 publica a tragicomédia A Salvação do Mundo. Em 1956 publica o volume Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler. Em 1957 publica a antologia de poesia de amor portuguesa Alma Minha Gentil e o volume Três Peças em um Acto, que inclui Três Máscaras, O Meu Caso e Mário o Eu Próprio-o Outro. Em 1958 publica em colaboração com Alberto de Serpa uma antologia de poesia religiosa portuguesa Na Mão de Deus. Em 1960 publica o romance As Monstruosidades Vulgares, quarto volume de A Velha Casa. Em 1961 publica o livro de poesias Filho do Homem, que será galardoado com o Prémio Diário de Notícias. Em 1962 publica o volume de contos Há Mais Mundos.

Além da poesia e do romance, destacam-se na sua obra os vários géneros literários: a crítica e o ensaio, sobretudo em artigos publicados na Presença e em várias outras revistas com que colaborou, e o género dramático, cultivado em tanta da sua poesia, com a publicação de várias peças teatrais.

Do ponto de vista religioso ia vivendo numa espécie de labirinto, degladiando-se razão e sentimentos obscuros, profundos. A própria razão se contraditava com argumentos contrapostos; os próprios sentimentos o atraíam a posições opostas ou diversas. A procura de Deus pelas vias usuais dos filósofos não lhe interessava; para José Maria Deus tinha que ser uma personalidade, uma existência concreta, uma transcendência viva — era deste Deus que necessitava e que continuamente buscava.

Neste mesmo ano de 1962 reforma-se e vai viver para Vila do Conde. Chegara ao fim a sua estadia em Portalegre. Aqui fizera alguns amigos fiéis, juntara uma notável colecção de arte sacra e popular, ensinara alguns milhares de alunos e transformara a vida interiormente agitada no tumulto sereno de uma obra sólida e durável. Na obra de José Régio temos presente uma diversidade de estruturas, temas, alegorias, mitos, símbolos e motivos, com que o autor procura exprimir não só o seu caso pessoal mas a condição humana nas suas alturas e nos seus abismos, nas suas condições labirínticas e nas aspirações de Eternidade e Absoluto, nas suas impossibilidades e nos seus limites, nas suas esperanças e nos seus desesperos, nas suas vulgaridades e nas suas sublimidades.

Vive ainda perto de oito anos na pequena cidade do Ave. Anos de trabalho tranquilo, apenas sobressaltados por uma experiência traumática no Sanatório Rainha D. Amélia em Lisboa e pela agitação provocada pela sua actividade jornalística. Régio era o alvo preferido de todos os movimentos literários que apareciam a renovar definitivamente a paisagem das letras portuguesas. Os seus últimos anos foram agitados por polémicas que com o seu feitio combativo e obstinado desencadeou e alimentou.

Em 1964 publica Ensaios de Interpretação Crítica, volume em que recolhe, corrigindo e desenvolvendo, textos já aparecidos noutros volumes ou em jornais, dedicados a Camões, Camilo, Florbela, e Mário de Sá-Carneiro. Em 1966 publica o quinto volume de A Velha Casa, com o título Vidas são Vidas. Em 1967 publica Três Ensaios sobre Arte, incluindo os ensaios Em Torno da Expressão Artística, A Expressão e o Expresso e Vistas sobre Teatro. Em 1968 publica Cântico Suspenso, livro que esteve na origem de uma releitura de Régio que muito terá contribuído para amargurar os últimos dias do poeta. Em fins de 1968 começa a escrever Confissão dum Homem Religioso, dando por praticamente concluída em Setembro de 1969 a primeira redacção do livro. Iniciara também a redacção do sexto volume de A Velha Casa.

Em Outubro de 1969 é acometido de um violento enfarte do miocárdio, de que viria a falecer a 23 de Dezembro na sua casa de Vila do Conde.

A personalidade e a obra de José Régio enchem uma época, ocupam um importante espaço da vida mental portuguesa, e só por si são o orgulho para o século XX não ter que invejar o século XIX português. Régio, tão religioso como Antero, foi mais completamente artista e tão filósofo como ele. Foi mesmo o que Antero não chegou a ser: um homem realizado em todos os aspectos em que aspirou realizar-se. Não se realizou a nível político, mas também não foi um político mas antes de tudo um homem religioso. Situá-lo numa época antes de mais política e conferir-lhe em função dessa época os atributos que revestiam a sua missão enquanto escritor é, se não mais, anacrónico. Régio procurou acima de tudo ser um espírito religioso, não apenas no sentido passivo que a religião apresenta nos seus místicos, mas no sentido positivo que a religião apresenta nos seus representantes proféticos, nos seus apóstolos, nos seus evangelizadores.