o Artigo


"O INSTITUTO - revista científica e literária"
XXV ano, II Série, nº 9, pp. 414-421 &emdash; Coimbra, Imprensa da Universidade, Março de 1878

 

A TELEFONIA, A TELEGRAFIA E A TELESCOPIA

DR. ADRIANO de PAIVA

Lente de Física da Academia Politécnica do Porto

 

A actividade científica do nosso país, pouco sensível de ordinário, foi nos últimos meses do ano próximo passado desusadamente excitada, em presença do moderno descobrimento do telefone magneto-eléctrico do professor, o sr. Graham Bell, natural de Edimburgo, e recentemente naturalizado americano. O nosso público interessou-se por modo raramente visto logo nos primeiros ensaios que com o novo aparelho foram feitos. Executados por alguns dos mais distintos membros do nosso corpo telegráfico, estes ensaios revestiram como que um carácter oficial; el-rei houve por bem consentir que algumas das experiências se executassem na sua presença, dignando-se ele próprio tomar parte nelas; e os jornais noticiosos, espalhando por toda a parte a nova dos resultados colhidos, e incumbindo-se de indicar as múltiplices aplicações a que se prestava o novo invento, conseguiram despertar a curiosidade, até nas localidades que mais indiferentes parecem sempre às conquistas da ciência. Ao mesmo tempo, graças à extrema simplicidade do novo instrumento, começava ele a ser construído pelos nosso artistas; a sua venda anunciava-se por preços excessivamente módicos; e mais que uma concessão de privilegio para o seu aperfeiçoamento era requerida aos poderes públicos [1].

O notável entusiasmo, produzido entre nós pela descoberta do professor americano, não pôde porém ser taxado de excessivo, se o compararmos com o que despertou nos países mais adiantados, onde os mais distintos homens de ciência a consideraram como a ultima palavra da telegrafia eléctrica. Foi assim que em Inglaterra o sr. W. Thompson, no congresso da Royal Britannic Association, realizado em Glaskow em Setembro de 1876, ao dar conta do telefone que vira na exposição de Filadélfia exclamava, debaixo de uma impressão ainda recente: - "Esta maravilha, senhores, é certamente a maior da telegrafia eléctrica. Eu ouvi frases inteiras que o meu colega, o sr. Watson, pronunciava na outra extremidade do palácio de Filadélfia. A sua voz chegava até mim clara e distinta, de modo a poder imaginá-lo apenas alguns passos." Foi ainda assim que em França, o sr. Breguet, em um excelente artigo, intitulado Os telégrafos telefónicos, não hesitou em dizer claramente: - "A descoberta da telefonia veio preencher a única lacuna que ainda existia na correspondência rápida do telégrafo [2]."

Em grande número de artigos, que tivemos ocasião de ler sobre este assunto, encontrámos sempre o mesmo modo de o considerar. O telefone tem sido comparado exclusivamente ao telégrafo. É um telégrafo sem pilha, e que realiza um grande progresso, por quanto, em vez de transportar ao longe a palavra sob a forma escrita, a transmite na forma oral. Deste modo é frequentemente designado pela expressão telégrafo falante, na verdade um tanto imprópria, se atendermos à etimologia.

Pela nossa parte, sem combatermos e existência de analogias incontestáveis entre o telefone de Bell e o telégrafo eléctrico, foi sempre opinião nossa individual, desde que começamos a estudar esta questão, que entre o capítulo da física, a que pode caber a denominação de telefonia e a telegrafia existem distinções essenciais, que se verificam igualmente entre estes dois ramos da ciência e o capítulo da óptica que se ocupa da telescopia. E como este modo de ver nos levou a dirigir a atenção para um estudo que, até há muito pouco, sopúnhamos inteiramente novo, permita-se-nos que desenvolvamos mais as nossas ideias.

Quando meditamos um pouco sobre o modo por que é estabelecida a comunicação do homem com a natureza que o cerca, dois dentre os orgãos dos sentidos parecem revelarem-nos desde logo uma importância superior. São o olho e o ouvido; - os dois orgãos cujas funções originaram dois dos mais momentosos ramos da física, a óptica e a acústica. E sendo estes orgãos essencialmente destinados para a observação à distância, nada deve surpreender-nos que logo que deles começou a servir-se, o homem se esforçasse por artificialmente lhes aumentar o alcance. Daqui na sua forma mais rudimentar, a primeira telescopia, e também a primeira telefonia, ou, antes, um ramo particular dela a que poderíamos chamar telacustica (de - ouvir ao longe).

Para as relações do homem a homem a natureza destina especialmente orgãos que permitem as articulações vocais. Origina-se assim a palavra; e esta consegue revestir mais tarde uma forma utilíssima fixando-se na escrita. A voz, porém, não sendo audível além duma distância determinada, e o transporte de escrita exigindo um correio, sempre moroso no desempenho do seu mister, tornava-se necessário dar à voz maior alcance, e poder, na sua falta, sustentar ao longe uma conversação por meio de sinais convencionados. Daqui um outro ramo da telefonia, que denominaremos telelogia, e daqui também a primeira telegrafia.

Vê-se pois, ao que nos parece, que a telefonia compreende dois ramos diversos por essência; em um o que se pretende é aumentar a potência auditiva, no outro a potência vocal. O primeiro homem, que escutou atento, colocando a mão posteriormente à orelha, realizou um telefone rudimentar do primeiro género, como um do segundo foi realizado por aquele que, para falar ao longe, acurvou as mãos em derredor dos lábios, ou se serviu de um porta-voz.

Se porém desta fase primitiva passamos a outras ulteriores encontramos aparelhos que podem reunir em si as funções de telefones dos dois géneros. Tal é o tubo acústico, que ainda hoje pode empregar-se com vantagem até à distância de 150 metros, e tal é também o moderno telefone Bell, o qual, se por um lado pode dizer-se que transmite as vibrações vocais de um dos interlocutores até junto do ouvido do outro, pode por outro lado considerar-se como realizando o transporte do pavilhão do ouvido até ao ponto em que o som se produz. Concebe-se até como é possível dar a este pavilhão artificial tal grau de sensibilidade, que do centro duma cidade populosa se possa, por meio dele, escutar o canto das aves em uma floresta distante de muitas léguas; resultado maravilhoso, mas que devemos considerar fatal, desde que, no intuito de consegui-lo, se pensou uma vez no emprego das correntes eléctricas. O que portanto entendemos dever saudar principalmente no telefone Belll, bem como nos ensaios que o precederam, não é a descoberta de novos telégrafos, os chamados telégrafos falantes; é sim uma aplicação, nunca antes feita, da electricidade, é a criação da telefonia eléctrica.

Desde que as considerações precedentes se desenharam claras ao nosso espírito, para logo nos quis parecer que uma nova descoberta científica se anunciava para breve; seria a aplicação da electricidade à telescopia, ou a criação da telescopia eléctrica.

Não se nos antolhava impossível a sua realização. Do mesmo modo que no telefone eléctrico o pavilhão do ouvido é, por assim dizer, transportado ao ponto em que o som se produz, e aí, recolhendo as vibrações em uma lâmina consegue transformá-las em correntes eléctricas, que vão recompor o som no aparelho receptor , - o que tudo, senão existissem as resistências interiores, tanto maiores quanto maior a distância a percorrer, deveria efectuar-se sem perda aparente de força viva, - tal se nos afigurava dever ser o mecanismo no telescópio que antevíamos. Uma câmara escura, colocada no ponto que houvesse de ser sujeito às observações, representaria, por assim dizer, a câmara ocular. Sobre uma placa, situada no fundo dessa câmara iria desenhar-se a imagem dos objectos exteriores, com as suas cores respectivas e acidentes particulares de iluminação, afectando assim diversamente as diversas regiões da placa. Tornava-se por tanto apenas necessário descobrir o meio de operar a transformação por nenhuma forma impossível, desta energia, absorvida pela placa, em correntes eléctricas, que em seguida recompuzessem a imagem.

A importância da descoberta dum instrumento de tal ordem manifesta-se com demasiada evidência. Contudo não é talvez inútil advertir que esse telescópio eléctrico, quando realizado preencheria uma lacuna que a telescopia actual, a despeito de todos os seus progressos jamais poderia pensar em fazer desaparecer. E, de facto, salta aos olhos a impotência da telescopia catadióptica, quando se reflecte que, sendo possível a observação astronómica a distâncias quase infinitas, a lei da propagação rectilínea da luz, tanto directa como reflectida, ou refractada em meios homogéneos, se opõe a que possamos observar um objecto qualquer à superfície da terra, embora a distâncias incomparavelmente menores, uma vez que se ache abaixo do horizonte aparente do observador, o qual, como é evidente, delimita no espaço o lugar geométrico de todos os pontos observáveis. Com o novo telescópio, porém, desapareceria tal obstáculo; transformado em corrente eléctrica, o movimento luminoso percorreria docilmente o caminho que nos aprouvesse dar ao fio destinado a conduzi-lo; e de um ponto do globo terrestre seria possível devassar este em toda a sua extensão.

Não podemos deixar de confessar que nos causava notável estranheza, em face da importância manifesta destas reflexões a da circunstância de serem elas uma naturalíssima consequência da descoberta dos telefones eléctricos, que nada que se lhes assimilasse nos tivesse aparecido em nenhum dos muitos artigos que havíamos lido sobre a matéria. Por tal motivo, fomos levados a pensar no modo prático de resolver a questão que nos preocupava, e chegamos a imaginar algumas experiências. Comunicámos desde logo as nossas ideias a alguns amigos e colegas e havendo-nos eles incitado a publicar estas considerações, com o fim de chamar a atenção dos práticos para a resolução de um problema de tal momento, começávamos a escrever um artigo sobre o assunto, quando nos veio à mão uma publicação recentíssima, e aí tivemos a satisfação de encontrar, pela primeira vez, alguma coisa sobre o instrumento, que pelas razões expostas denominamos telescópio eléctrico, e que ali se designa pela expressão equivalente de telectroscópio. Vimos então que aquilo de que não falavam os artigos que consultáramos, aliás de físicos distintos, não escapara ao já festejado professor, o sr. G. Bell. a quem a humanidade ficará sendo devedora de mais esta maravilha.

"O telectroscópio, lê-se no referido livro, é um aparelho baseado, como o telefone, sobre a transmissão eléctrica. Compõe-se de duas câmaras colocadas uma no ponto de partida outra no ponto de chegada. Estas câmaras são ligadas entre si por fios metálicos convenientemente combinados. A parede anterior e interna da câmara de partida é eriçada de fios imperceptíveis cuja extremidade aparente forma, por sua reunião, uma superfície plana. Se colocarmos diante desta superfície plana um objecto qualquer, e se as vibrações luminosas, correspondentes às particularidades de forma e das cores deste objecto, depois recebidas por cada um dos fios condutores forem transmitidas a uma corrente eléctrica, reproduzir-se-ão identicamente na extremidade destes fios. Os jornais de Boston afirmam que as experiências feitas naquela cidade, foram coroadas de excelente resultado, mas torna-se necessário aguardar descrições exactas do aparelho para acreditar este anúncio [3]."

Pela nossa parte nada acrescentaríamos sobre a matéria, se não víssemos escritas as últimas palavras do trecho que acabamos de transcrever. À vista delas porém diremos que as experiências que tencionávamos realizar, e que ainda procuraremos levar a cabo, consistiam em ensaiar o emprego do selénio como placa sensível da câmara escura do telectroscópio. Este corpo, com efeito, goza de uma notável propriedade, cuja descoberta é de data muito recente. Quando interposto em um circuito eléctrico que passa em um galvanómetro, faz desviar sensivelmente a agulha deste, todas as vezes que um fascículo luminoso vem incidir sobre ele, e demais este desvio é diverso sob a influência das radiações de diferente cor. É o que mostram os seguintes algarismos, que indicam desvios do galvanómetro:

Ultravioleta, 139; violeta 148; azul, 158; amarelo, 178; vermelho, 188; vermelho, 188; ultra-vermelho, 180.

Estes resultados foram obtidos pelo sr. dr. Werner Siemens, de Berlim, o qual, preparando pequenas lâminas circulares de selénio, resfriadas depois de experimentarem uma temperatura de 210°, o que lhes dava uma sensibilidade extrema, chegou a construir um fotómetro duma grandíssima sensibilidade, bem como um curioso instrumento, uma espécie de olho artificial, de que seu irmão, o sr. William Siemens, fez uma curiosa descrição em Londres, em um dos saraus da Royal Society [4]

Muito desejáramos que o selénio, aplicado ao fim que acabamos de indicar, pudesse produzir o desejado efeito, se não nas nossas, em outras mais hábeis mãos. Seria para nós um dia do maior júbilo aquele em que lográssemos ver o telefone eléctrico aperfeiçoado e o telectroscópio funcionando. Pelo que respeita ao telefone, cremos, com o sr. Breguet, que não dará tudo o que há dele a esperar, enquanto uma pilha lhe não for adaptada, enquanto o telefone voltaico não vier substituir o actual telefone magneto-eléctrico. Neste a força viva que tudo produz é somente a que o próprio experimentador põe em acção pelo trabalho vocal; podemos compara-lo a um veículo, cujo motor fosse o simplesmente o esforço da própria pessoa transportada. Não assim em um telefone voltaico, no qual a pilha seria um verdadeiro reservatório de força, que poderia convenientemente aproveitar-se do mesmo modo que é fácil dar a velocidade desejada a uma locomotiva, pois que isso se pôde dispor de um enorme excesso de força motriz. E estas mesmas razões nos parece estarem indicando que são também as correntes voltaicas aquelas que mais convirão à futura telectroscopia.

Com estes dois maravilhosos instrumentos, fixo em um posto do globo, o homem estenderá a todo ele as faculdades visual e auditiva. A ubiquidade deixará de ser uma utopia para tornar-se perfeita realidade.

Então, por toda a parte à superfície da terra, se cruzarão fios condutores, encarregados de importantíssima missão; serão eles os ductos misteriosos que conduzirão, até ao observador, as impressões recebidas pelos orgãos artificiais, que o génio humano soube transportar a todas as distâncias. E, do mesmo modo que a complexidade dos filamentos nervosos pode dar a ideia da perfeição superior de um animal, esses filamentos metálicos, nervos de uma outra natureza, testemunharão por sem duvida o grau de civilização do grande organismo que se chama &emdash; a humanidade.

Porto, 20 de Fevereiro (de 1878)


- 1 - A primeira notícia que apareceu em Portugal sobre o telefone foi, ao que supomos, a que deu o Século de Coimbra em o nº 2 da 2ª série, correspondente a Dezembro de 1876; mas observaremos que essa notícia se refere ao instrumento tal como foi apresentado na exposição de Filadélfia, que diferia bastante do actual. Era ainda ao mesmo que se referia o Sr. W. Thompson no congresso de Glaskow, em setembro do mesmo ano (vid. Revue Scientifique de 20 de Janeiro de 1877). O novo telefone magneto-eléctrico do Sr, Bell só foi enviado para Inglaterra, e experimentado em reuniões públicas, no mês de Julho de 1877. Depois disso foi enviado para Paris ao físico construtor, o Sr. Breguet, e apresentado por este sr à Academia das Ciências na sessão de 29 de Outubro de 1877 (vid. Comptes rendus hebdomaires, 1877, 2º semestre); mas já antes disso se via a sua descrição na Revue Industrielle dos srs Fontaine e A. Buquet, VIII année, nº 43 (24 de Outubro de 1877), a qual dá também artigos que dizem ao assunto em os nº 17 (25 de Abril de 1877) e 48 (28 de Novembro de 1877). Na sessão da Academia das Ciências de Paris, de 26 de Novembro de 1877, foram feitas novas obervações sobre o telefone (vid. Comptes rendus, tomo LXXXV, nº 22). Em Portugal as primeiras experiências tiveram lugar em Novembro de 1877, com aparelhos mandados vir da Alemanha, e mais tarde com outros construidos pelo sr Hermann, da direcção geral dos telégrafos . As experiências a que el-rei assistiu tiveram lugar a 21 de Dezembro próximo passado entre o observatório de D. Luís e o da Ajuda; e a 25 do mesmo mês dava o jornal O Progresso, de Lisboa, uma interessante noticia sobre o assunto, a transcrição segundo cremos da conferência, feita no congresso da Royal Britannic Association, celebrado em Plymouth (secção de matemática e de física) pelo sr W. H. Preece, membro do Instituto dos engenheiros civis. Vid Revue Scientifique de 10 de Novembro de 1877.
(texto do artigo)

- 2 - Revue des deux mondes, tome vingt-cinqiéme, livraison du 1 Janvier 1878, pag 240.
(texto do artigo)

- 3 - L. Figuier L'Année scientifique et industrielle, 21 année (1877), Paris !878, pag. 80.
(texto do artigo)

- 4 - H. de Parville Causeries scientifiques, Seiziéme année (1876) Paris, 1877, pag. 190 e seguintes.
(texto do artigo)

Manuel Vaz Guedes
Setembro-1998